As políticas da filosofia
Edson Teles
12/07/2023 • Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq
Nos últimos anos temos assistido e participado de uma intensa movimentação na área de Filosofia no Brasil. O volume dessas atividades se destaca não tanto pelas mudanças estruturais ocorridas, mas pelo tamanho da resistência e pela potência transformadora de suas proposições. Há uma série de políticas sobre a filosofia, as quais recebem diferentes nomes e se envolvem com distintas epistemologias[1]. Contudo, no Brasil, ocorre o conflito evidente entre essas diversas existências filosóficas e uma forma que se constituiu como hegemônica.
É destacável o quanto determinada história sobre a filosofia se configurou como um engessamento conservador da área. Historicamente o país se tornou uma nação a partir de um passado colonialista, patriarcal e racista. Mesmo o seu desenvolvimento posterior e sua configuração atual seguem marcados por modos de dominação que de alguma maneira repetiram ou sofisticaram aquela estrutura. Na Filosofia, participamos de uma tradição fundamentalmente eurocêntrica que durante as etapas de institucionalização da área disciplinar e do pensamento filosófico registrou sua própria história e reforçou os privilégios de se ensinar e pesquisar os cânones dessa tradição. Um de seus resultados foi o epistemicídio das filosofias outras[2].
As estruturas de dominação são acompanhadas de ideologias, políticas, artefatos socioculturais fabricados com o intuito de fazer com que o sistema funcione e se fortaleça. Não se trata de tecer considerações sobre intenções ou desejos de poder e de hegemonias. Sabemos o quanto nossos mestres foram dedicados às suas pesquisas e à formação de seus alunos. Dentre estes, boa parte é composta por nós mesmos.
Trata-se de compreender que a "forma social"[3], através da qual operam processos de subjetivação e de formação de um 'comum' (nação, povo brasileiro, cultura nacional etc.), oportunizou o estabelecimento dos cânones e das histórias ensinados em nossos departamentos e cursos de Filosofia. Ao estabelecer determinado ponto de vista sobre o que seja o argumento filosófico e o pensamento conceitual se produziu um universal sobre o ensino e a pesquisa na área.
Dessa forma, não se trata de cancelar uma expressão do pensamento filosófico, o eurocêntrico. Antes, dizemos sobre a necessidade e a potência de sermos plurais, tanto quanto o é nossa sociedade. Várias de nossas principais questões contemporâneas ou especificidades têm nos pensamentos afro-brasileiros e ameríndios suas melhores possibilidades de interrogação e de reflexão.
Com as cotas nas universidades públicas federais e a ampliação de vagas em geral para o meio acadêmico universitário, parte considerável dos debates políticos liderados pelos movimentos negros, feministas e feministas negros adentraram as salas de aula e os corredores das faculdades. Essa aproximação não se deu por um passo da instituição em direção à sua democratização, mas por uma exigência das lutas contra as desigualdades no acesso aos direitos e à cidadania.
Em grande medida, as bibliografias e autores pretos estão abrindo espaços nos cursos de filosofia por meio dos esforços de nossos novos pesquisadores, mestrandos e doutorandos e de nossos alunos de graduação.
O espaço, me parece, é ainda insignificante diante dos problemas e das constatações acerca do contemporâneo. São livros que entram em bibliografias de disciplinas apertadas entre autores e obras canonizadas e por meio de pesquisadores que circulam mediante esforço excepcional. Os processos seletivos e os concursos para novos docentes ainda caminham a passos lentos em direção à transformação das formas acadêmicas arcaicas.
O pensamento decolonial, gradativamente e bem mais lento do que a demanda exige, vai entrando e se tornando uma realidade em nossa área. Contudo, talvez fosse o momento de atentarmos para as reflexões de Nego Bispo e, inspirados nos corpos que resistem ao modelo colonial faz séculos, acrescentarmos o pensamento e a ação contracolonial[4].
Que tal se combinarmos que os próximos concursos em nossos departamentos serão para vagas acerca dos pensamentos africano, afro-brasileiro, afro-americano, caribenho, ameríndio, asiático, feministas, entre outros?
[1] KODJO-GRANDVAUX, Séverine. Filosofias africanas. Tradução: Cleber D. L. da Silva et alli. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2021.
[2] Segundo Sueli Carneiro, o processo de invisibilização e apagamento de outras epistemologias não eurocêntricas produziu entre os subalternizados a indigência cultural, a negação do acesso à educação, a inferiorização intelectual, a deslegitimação do negro e a desqualificação de suas formas de conhecimento. Ver CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
[3] SODRÉ, Muniz. O fascismo da cor. Uma radiografia do racismo nacional. Petrópolis/RJ: Vozes, 2023.
[4] SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023.