A máquina da excelência filosófica: uma discussão histórico-conceitual.

Fabio Antonio da Costa

30/06/2023 • Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq

 

Dedico este texto aos graduandos do curso de filosofia das Faculdades integradas em Humanidades do Colégio Pedro II

 

O questionamento sobre os parâmetros de excelência pelos quais são avaliadas as pesquisas em filosofia merece um aprofundamento histórico-conceitual. Na falta de tal procedimento, não se nota quais são os problemas que instituíram tais parâmetros, uma vez que eles mesmo são derivados de postulações filosóficas. Sem essa análise dos princípios, corre-se o grave risco de reivindicar uma abertura para conteúdos filosóficos diversos, mas apenas para que sejam moldados conforme a máquina filosófica da excelência. A diversidade, então, tão-só se afiguraria ou bem como a repetição das mesmas estruturas metodológicas sobre temas diversos, ou bem como a simples integração do diverso enquanto justapor um ao lado do outro, cada qual indiferente em relação aos demais, como se não houvesse graves conflitos de método exatamente no interior daquilo que se supõe não-diverso, canônico. A diversidade não é uma exterioridade. Ela somente pode aparecer como problema incontornável se emergir do interior mesmo daquilo que se supõe como bem estabelecido ou sedimentado.

Minha exposição se deterá numa discussão reconstrutiva dos postulados histórico-conceituais da assim chamada máquina de excelência filosófica. Em boa medida, o que está em jogo é a determinação das possibilidades de fazer filosofia, para além da discussões sobre definições explícitas, uma vez que é absolutamente possível comprar suposições filosófica não tematizadas discursivamente, mas praticadas no ato da pesquisa e do ensino. Sou levado a crer que parte da comunidade filosófica se verá constrangida a participar dessa discussão, particularmente após os escritos de Foucault que recentemente vieram à público, O Discurso filosófico, publicado neste ano de 2023. O texto diz muito para nós, uma vez que se dedica a longas discussões sobre dois personagens que direta ou indiretamente constituem a nossa prática: Martial Gueroult e Jules Vuillemin.[1]

A maioria de vocês já deve ter se deparado, nos livros didáticos, com a caracterização da filosofia como reflexão rigorosa, radical e de conjunto. Em suas variantes, esses três termos ainda comportam a inclusão do conceito de crítica, ou a substituição da locução “de conjunto” pela “voltada para a totalidade”. Para além das tautologias, paráfrases ou redundâncias que eclodem das tentativas de determinar esses termos, quase nunca é posto com suficiente pasmo o fato de que a filosofia não receba uma determinação objetual; ou que não se fundamente as razões pelas quais são essas as suas características, e não outras; ou por quais razões, ainda que os termos tentem sustentar a diferença entre senso comum e senso crítico, nós nos aventuramos a afirmar coisas ambíguas como “filosofia de vida” ou que os povos originários possuem a sua filosofia. Desprovida de objeto, a filosofia seria, sobretudo, um método, mas método estilhaçado em uma variedade de métodos já propostos ao longo da história da filosofia e, em alguma medida, passível de se chocar com os métodos daqueles campos que detêm um objeto temático. Radical, rigorosa e de conjunto como a identidade própria da filosofia perfazem uma história, mas absolutamente diversa de toda e qualquer outra história, porque medram a partir da tentativa de resolver o problema que é a própria história da filosofia. Se a filosofia é um método produtor de métodos, dada a diversidade metodológica de sua história, qual seria sua caracterização apropriada de conhecimento, já que a filosofia foi produtora de uma miríade de propostas epistêmicas? Não julguem que, com isso, retornamos à velha forma do ceticismo, para a qual a diversidade conflituosa de doutrinas era um bom respaldo para a suspensão do juízo sobre a verdade filosófica. O ceticismo antigo poderia ser refreado com a expectativa de que a incompatibilidade fosse superada; as contradições fossem reconciliadas; ou que a multiplicidade fosse ultrapassada em nome de uma verdadeira filosofia ainda abscôndita. A história da filosofia está tão inervada por pressupostos teóricos pouco explícitos, por filosofias da história nada evidentes, de maneira tal que já previamente contamos que toda e qualquer filosofia inevitavelmente será ultrapassada, apenas restando a nós contemplar os escombros das devastações pregressas.

Antes de esmiuçarmos os pontos sobre a relação entre filosofia e história da filosofia, convém indicar o contexto histórico-cultural que nos enraíza institucionalmente no quadro desse problemática. Tal como ocorre com certa constância nos mitos, a filosofia no Brasil, em parte, foi fundada por estrangeiros. Aqueles curiosos por essa história podem dela tomar conhecimento pelo livro de Paulo Arantes, intitulado Um departamento francês de Ultramar. Em 1935, Jean Maugué chega ao Brasil no navio Mendoza, o mesmo em que se encontrava Claude Levi-Strauss. A missão de ambos era auxiliar na sedimentação e aprofundamento científico da nascente Faculdade de Filosofia, Letras e Humanidades da USP. A princípio, a partir de orientandos que se deslocavam para a França, mas em seguida, anos depois, ao também desembarcarem no Brasil rumo à USP, Martial Gueroult e Victor Goldschmidt, participaram do estabelecimento do nível de excelência uspiano. Conforme exposto por Paulo Arantes, nós devemos entender por nível a erradicação de algo como uma leviandade em relação à filosofia. Pelos próprios franceses missionários, ora o brasileiro era visto como um famélico por novidades, pela última moda filosófica europeia; ora como um discursador sobre as grandes questões fundamentais, todas elas preenchidas com referências que estivessem à mão, por mais desconexas que fossem: um cabedal de citações descabidas capazes de percorrer de Aristóteles à bomba atômica. Faz-se então necessário, ao menos, o costume de ler o filósofo. A questão é: ler como, com qual método, segundo qual parâmetro de rigor?

  Por mais que o método de Gueroult tenha forjado o rigor de figuras como Oswaldo Porchat, José Arthur Giannotti, Marilena Chauí ou Renato Janine Ribeiro, raramente as fundamentações do mestre se dão a reconhecer. Mesmo que tenha sido publicada somente depois de sua morte, a obra metodológica capital de Gueroult, a Dianoemática, jamais foi traduzida para o português[2]. Quando não mantemos viva a memória de um antepassado, há o grande risco de que ele se converta em uma assombração. Temos dificuldades em reconhecer os problemas que levaram nosso autor a determinar o rigor de toda e qualquer filosofia pelo necessário caráter sistemático. Toda e qualquer filosofia seria oriunda de uma ideia, ou um grupo de ideias elementares, a partir dos quais um conjunto conceitual é desenvolvido. Evidentemente, tais conceitos apresentam uma relação de codeterminação a partir dos princípios metodológicos fincados pelas ideias elementares. Não há, por isso mesmo, um método externo ao sistema filosófico, porque sua estrutura e seu desdobramento conceitual devem ser explicitados pela resposta que aquele sistema específico confere aos problemas epistemológicos. Um sistema filosófico funda o próprio conceito de real, sendo qualquer posicionamento dual como interno e externo, senso-comum e ciência, decidido no seu interior. A tarefa do historiador da filosofia seria detectar as relações de simetria, assimetria, analogia, extrapolações para diferentes campos temáticos, ao mesmo tempo rastreando quais são as ideias elementares que ordenam o desdobramento conceitual. O assim chamado método estrutural de Gueroult obedece, portanto, a ordem das razões dos conceitos, um tempo lógico, não um tempo cronológico, caso esse em que verificaríamos a gênese de um conceito a partir do desenvolvimento dos trabalhos de um autor. Essa diferença entre gênese e estrutura alimentou debates entre Ferdinand Alquié e Gueroult.

A filosofia é crítica porque cada sistema filosófico, na medida em que funda o real, determinando a partir de si pares conceituais assimétricos como verdadeiro e falso, realidade e ilusão, ciência e senso comum, moral e imoral, belo e feio. Se ao sistema cabe a determinação e explicitação dessas estruturas, então a ele cabe igualmente o rigor, uma vez que se vê compelido a justificar o seu método. Uma vez que é fundante do próprio real, nisto consiste tanto a sua radicalidade quanto seu compromisso com a totalidade. Neste último caso, em um duplo sentido: totalidade como unidade arquitetônica do sistema e totalidade como determinação dos lugares dos conceitos fundamentais. Ao historiador da filosofia caberia discernir e explicitar a posição que ocupa determinado conceito apresentado no texto em sua relação com os conceitos elementares fundantes, verificando a coerência entre os conceitos a partir dos critérios metodológicos estabelecidos no interior do sistema. Em sendo assim, a externalidade histórica, as contingências factuais, o estado das ciências durante a produção de um sistema nada desempenham para a justificação de sua validade. Que na história do mundo tenha se apresentado a física newtoniana, nela nada temos que refute o sistema de Aristóteles, uma vez que é em seu interior que os conceitos de realidade, de matéria, de espaço, de tempo e de movimento são estabelecidos. Um sistema não é a refutação de outro, mas cada qual perfaz uma mônada. Atentemos para o fato de que, se esse é o poder instaurador do sistema filosófico, então devemos dizer que ele é responsável pela reelaboração em seu interior dos valores semânticos da linguagem disponibilizada pelo cotidiano.

A história da filosofia é a-histórica, não há progresso, ruínas passadas, refutações definitivas, superações, a não ser a partir do ponto de vista de determinado sistema. O preço da fuga do tempo é a suposição de uma incomensurabilidade entre os sistemas, mas é o valor pago para a autonomização da história da filosofia, não mais se rendendo aos apelos de subordinação em relação à história da ciência, cujos objetos superados são desprovidos de valor, podendo ser relegados ao esquecimento ou à condição instrumental de etapa rumo ao que efetivamente comporta validade. Nessa medida, talvez possamos dizer que nosso autor é a expressão mais radical de intratextualidade, autoria e unidade da obra. Nós, mortais, caso ansiemos por alguma verdade definitiva, alguma estabilidade conceitual, apenas temos em mãos a possibilidade de aderir a um sistema. As razões para a adesão podem ser as mais disparatadas e voluntaristas. Todavia, aderido ao sistema, as justificações devem ser expressas a partir de sua estrutura. Se o ato voluntarista não nos basta, então que constituamos nosso próprio sistema e que nos submetamos às provas da coerência interna. Contudo, muita atenção. O pecado mortal e absoluto contra a filosofia sistemática não é o ceticismo, mas sim aquilo que chamamos de ecletismo. Que se tente justapor princípios divergentes ou complementar entre si conceitos derivados de fontes contrárias, estamos prestes a implodir a racionalidade. É por isso que julgamos os filósofos antigos, classificados como ecléticos, como filósofos menores, quase diletantes intelectuais tomados por ânsias enciclopédicas. Ao historiador da filosofia apenas cabe as tarefas de análise, de reconstrução e de verificação da posição relacional dos conceitos na ordem das razões. Diante do modelo de Gueroult, diante dessa filosofia da história da filosofia, nada pode ser tão assistemático, tão sem rigor, tão selvagem, tão similar a um brasileiro carente da adequada civilidade filosófica, do que um Diógenes de Laércio: esse suposto repositório acrítico e desclassificado de trivialidades e de faits divers.

Eu espero que vocês estejam atentos para aquilo que tento fazer com os meus argumentos. A crítica imanente ao texto é uma atividade filosófica exatamente por se sustentar em pressupostos filosóficos, os quais, infelizmente, muitas vezes, não são explicitados. Se Gueroult produz uma filosofia da história da filosofia, então ela é o sistema da história dos sistemas. Evidentemente, enquanto sistema, essa filosofia mesma é a-histórica. A nossa pergunta capital deveria ser: o que fundamenta a determinação do conceito de filosofia como sistema? O que antes era chamado de doutrina pode ter um valor unívoco com aquilo que, a partir da modernidade, começamos a chamar de sistema filosófico? Convém usar a expressão “a doutrina das ideia de Platão” ou “a doutrina do Ser em Aristóteles” embutindo na determinação semântica de doutrina a pretensão de um sistema? Retornemos brevemente ao que foi enunciado sobre as pretensões iniciais do cristianismo por se estabelecer como uma hairesis ou uma scholé. Maurice Sachot mostra como esses dois termos estão situados no interior de sua malha semântica específica. Justino, Marcião e Clemente de Alexandria empregam os termos mencionados acompanhados por didaskaleia, didaskalos, didaskein, didaskalia ou didaché.[3] Esta última palavra pode ser traduzida como doutrina cristã, sendo sinonímia de mathemata. A obra que remonta ao cristianismo primitivo, que comporta como título Didaché[4], representa uma das formas históricas de compreensão do que é uma doutrina. Muito longe de ser um sistema, o texto datado do primeiro século do cristianismo ensina um conjunto de princípios éticos e de prescrições de conduta para a integração e preservação da comunidade cristã. Nele também vigora a descrição dos atos ritualísticos básicos, como a Eucaristia e o Batismo, pertencentes ao grupo. A doutrina, neste caso, é propulsora de uma estrutura de ações e condutas.

Essa breve digressão comparativa nos compele a rastrear a história da sedimentação do conceito de sistema, o que equivale a uma porta de saída do sistema instaurado por Gueroult. Debruçarmo-nos sobre essa genealogia, além de consumir muito tempo, ao fim nos desviaria da nossa meta. Ao menos nos é permitido indicar que a forma do conceito de sistema utilizado por nosso autor é proveniente de Kant, e sua conjunção com o problema da historicidade está situado na parte final da Crítica da Razão Pura, na Doutrina Transcendental do Método[5]. Ao adentramos no capítulo terceiro, Kant oferece a definição de arquitetônica da razão pura como a arte dos sistemas. Por ser uma ideia da razão pura, a requisição de sistematicidade exprime sua incondicionalidade, ou seja, que os conceitos perfaçam entre si uma totalidade, de modo que todas as partes se regulem a partir de um princípio. Se essa é a exigência primeira constitutiva da racionalidade, então a história da filosofia, enquanto história da própria razão antes do estabelecimento de uma crítica, apresenta apenas a aparência de um conflito irresolúvel entre diversas posições filosóficas. Como vemos no capítulo destinado a uma história da razão pura, mesmo o ceticismo opera segundo a exigência sistemática da razão, uma vez que funciona segundo princípios coerentes que colocam em questão o método científico. Em oposição aos céticos estão os dogmáticos, os quais tentam asseguram a ciência por meio de princípios simplesmente postos, sem antes realizar a tarefa crítica do esclarecimento de suas condições de possibilidade. Quanto ao objeto e à origem, também as correntes filosóficas se diferenciariam ao longo da sua história: sobre o primeiro, o conflito entre intelectualistas e sensualistas; quanto à segunda, a disputa entre noologistas e empiristas. Não vejam nisto matéria de pura curiosidade, uma vez que diferentes livros didáticos organizam a história da filosofia segundo tais parâmetros: eles se estendem, retrospectivamente, da modernidade rumo à antiguidade, assim como prospectivamente, da modernidade rumo ao conjunto de posições gerais filosoficamente possíveis na contemporaneidade. O conflito que agora se prenuncia está entre história ideal e história factual.

Tal conflito não é exógeno às discussões da filosofia alemã, não se restringem à historiografia da filosofia. A propósito da Crítica da Razão Pura, herdeiros e oponentes de Kant, obedecendo o princípio sistemático da razão, lançarão a pergunta: por quais razões a estrutura categorial é essa, e não outra? Ou melhor: qual é a gênese da estrutura categorial, a partir de qual princípio primeiro, mesmo que essa gênese não seja de ordem cronológica, mas puramente lógica? Observem como esses dois momentos passam a estar desconfortavelmente tencionados nas reflexões de um assumido discípulo de Gueroult: Jules Vuillemin. Particularmente em suas obras O que é um sistema filosófico[6] e Necessidade ou contingência[7], o fio condutor de uma história da filosofia é o estabelecimento de um quadro classificatório da filosofia, capaz de ser supra-histórico, porque o caráter fundamental da prática filosófica está assentado em uma axiomática; e a variação entre correntes somente ocorreria a partir de variações desses princípios, mas jamais quanto ao cerne metodológico de derivação a partir de princípios, de coerência interna, de necessidade de demonstração, de demonstração por absurdo. A filosofia como axiomática teria sua estrutura genética a partir da matemática.

Por amor a vocês mesmos, tenham alguma complacência em relação aos nossos autores. Não se trata de uma simples vontade de sistema, antes, o que está em jogo, com o problema genético, é a própria autonomia da filosofia. Eis aqui um caso em que, para entender, em suas graves implicações, o que se passa no interior de um texto, faz-se necessário apelar para o contexto, para um discussão intelectual corrente na época. O princípio de sistematicidade como sustentáculo das formas classificatórias, confrontado como a exigência de fundamentação genética, ao fim resultou em uma cisão, um conflito entre campos empíricos, que defendiam a possibilidade de demonstração de uma gênese categorial a partir da psicologia, da antropologia e da sociologia; e o campo filosófico defensor de uma estrutura categorial de natureza transcendental. Em termos muito breves e resumidos, nós temos de um lado Durkheim, por exemplo, preocupado com a gênese e classificação das formas de representação dos povos ditos primitivos, o qual sustentará a tese, particularmente na obra Formas Elementares da Vida Religiosa, de que a estrutura categorial elementar do pensamento está assentada socialmente, e não transcentalmente, o que pode ser demonstrado a partir do fato social da religião. Por outro, nós nos deparamos com Edmund Husserl, em seu longo debate, no primeiro livro das Investigações Lógicas, contra a pretensão psicologista, ou seja, empírica, de derivação das estruturas lógico-categoriais do pensamento. Antes, em nosso texto, a multiplicidade histórica de correntes filosóficas poderia desempenhar o papel de solvente da filosofia. Agora, a tomada de posse pelo plano empírico da temática propriamente filosófica do transcendental dissolve a sua autonomia. Uma questão de ordem abstrata sobre a incondicionalidade e universalidade da ciência em geral, a qual repercute nos plano mais comezinho e reles da vida prática: por qual razão sustentar instituições ou departamentos de filosofia, por qual razão dar empregos, se a filosofia não se sustenta nem como campo disciplinar, nem tem autonomia metodológica, sendo redutível às ciência empíricas; nem resolve os problemas que propõe, passíveis de serem solucionados ou dissolvidos pelas investigações concretas?

Observem como a gênese cronológica e a gênese lógica acabam por convergir de modo tenso. Se a estrutura sistemática é constitutiva da determinação da racionalidade, então a Razão se contorcerá em cólicas caso se assuma que a emergência de um sistema qualquer se dá de modo voluntarista, decisionista ou absolutamente contingente. É possível escorar a racionalidade filosófica na matemática, porém, apenas temos nisso uma transferência de problema ou o seu adiamento. Como, então, o racional emerge, se reconhece ou se assume a partir do irracional? Aliás, o que é o irracional, neste caso? Eis um outro momento em que retomamos a referência ao título dessa exposição. Creio que todos aqui têm a plena ciência do decantado tema histórico-filosófico do milagre grego. É de todo evidente então que sob a irracionalidade estão postos os elementos míticos e religiosos. Todavia, essa solução se afiguraria desconfortável para filósofos como Vuillemin, já que um conhecido seu, o ex-filósofo e então antropólogo Levi-Strauss já havia demonstrado, minuciosamente, a organização estrutural dos mitos ameríndios: não faltavam as eles as derivações ou fórmulas de transformações de conteúdos concretos em outros conteúdos; não faltavam as relações entre conceitos em sentido simétrico ou de simetria invertida; não faltavam o encadeamento lógico interno que demarcava a diferença de um encadeamento cronológico. A mitologia ameríndia não era irracional, mas sim um sistema, um sistema de sistemas concêntricos, concentricidade essa que não se deve ao fato de que o cerne está fixado em um único ponto, mas sim que cada subsistema carrega consigo um mesmo núcleo formal, o que resulta no caráter matemático de fractais. Em sendo este o caso, justifica-se a falta de importância da história para os ameríndio, como não sendo a historicidade o princípio de inteligibilidade de suas instituições. A história seria um problema epistemológico nosso, o que intensifica a necessidade de explicar como foi possível o aparecimento da filosofia. Aos poucos, Vuillemin vai se afastando da racionalidade como sistema, como estrutura imanente, e acaba reconhecendo o papel de uma racionalidade procedimental, performática, tal como apontava seu colega Jean Pierre-Vernant, particularmente na obra As origens do pensamento grego. Os debates políticos, o enfraquecimento da autoridade como fonte de legitimação, a necessidade do jogo de requisitar e oferecer razões, as disputas argumentativas enquanto mero exercício lúdico ou como forma de se relacionar com o sistema jurídico, todos esses são elementos práticos que extravasam a ordem internalista do sistema. Os efeitos dessa passagem revelam interesses para a própria história da filosofia, porque passa a ser importante compreender com quem os filósofos discutiam, em que circunstâncias discutiam o que discutiam. Virá o tempo em que a pergunta será sobre o que faziam os filósofos quando emitiam os seus discursos, quais efeitos pretendiam, como os efeitos se propagaram em outros discursos; o que havia de práticas concretas que sustentassem a verossimilitude de suas falas. Talvez comecemos a vislumbrar a possibilidade de saída do texto ou da ordem discursiva.

Sobre o trabalho de análise estrutural feito por Levi-Strauss, o antropólogo Maurice Godelier profere apenas um lamento: ainda faltaria uma análise estrutural das práticas, ou seja, dos rituais. Aqui contamos com um espelhamento, uma vez que a ordem estrutural do discurso estaria refletida em configurações estruturais da prática. O ritual seria então, também ele, um sistema. Essa investigação não foi realizada pelo autor das Mitológicas, mas não deixa de ser detectável em antropólogos como Marcel Mauss, Robert Herz, Van Gennep ou Victor Turner. O processo de extravasamento textual também já havia sido iniciado pelas pesquisas de Jane Ellen Harrison, em seu livro Themis, e por Robertson Smith[8]: ela, em sua tentativas de demonstrar a gênese e o nexo do discurso mítico com a prática ritual na Grécia Antiga; ele, em suas leituras sobre as religiões semíticas, tentando demonstrar as camadas ritualísticas e seus conflitos no interior das narrativas bíblicas. Se o caráter estrutural dos ritos não foi esmiuçado por Levi-Strauss, ainda que tivesse tratado da eficácia simbólica, nós encontraremos no renomado hinduísta Frits Staal, principalmente na obra Ritual e Mantras: regras sem sentido, a tese de que os rituais possuem a mesma estrutura da linguagem: regras de estrutura frasal, regras de transformação, regras de auto-incorporação de regras, recursividade, auto-referencialidade. Através de rituais ligados à tradição védica, o autor tenta demonstrar o primado da sintaxe, de uma pragmática sintática, sobre a semântica[9]. Com esse tipo de tese, a conformação interna ao texto se converte em ordenação externa ao texto, o que propiciaria agora, sem que fosse espúria, a seguinte questão analógica: não seria a lida com o texto uma forma de ritual?

Observemos que, para a lida com o texto, emprega-se uma série de regras operatórias. Essas regras são compartilhadas, o que a elas confere um senso comunitário. Essas regras de operação explicitam o conteúdo semântico. Um vocabulário é compartilhado para a operação e a partir da operação. Estabelece-se assim as condições de possibilidade de pertencimento e para a demarcação de diferença em relação ao externo. Tal arcabouço fomenta disputas e concorrência, como aquelas que vemos, com certo ar de enfado e hilaridade, entre analíticos e continentais.

No caso do texto filosófico, o fenômeno é curioso. Se a nossa suposição prévia é de que o texto ou obra obedece a uma organização arquitetural derivada de seus princípios conceituais, então é possível ocorrer que um autor, por uma contingência qualquer, desvie-se das suas linhas mestras, cabendo ao leitor a possibilidade de entender ou esclarecer melhor o autor do que o ele mesmo se compreendeu. A instância meta-humana comunicante não é o autor morto, mas o espírito do texto. É esse tipo de fenômeno que, em parte, justifica o aparecimento de frases como: o autor pode até estar dizendo isso, mas não significa que ele fizesse realmente o que está dizendo que faz; ele fazia tal coisa por convenção, mas não acreditava nisso; essa parte do texto somente pode ser entendida como uma alegoria ou metáfora, porque é completamente contrária ao seu espírito. O problema da relação entre espírito e letra terá grande proeminência no idealismo alemão, assim como será motivo para imensos entreveiros em relação ao entendimento da Antiguidade e da importância dos rituais. Aliás, entraves que se armam contra a própria concepção de sistema, em relação a qual o romantismo alemão se ergue em oposição, uma vez que o sistema sufocaria a liberdade e o poder criativo da imaginação.

Apenas a título de curiosidade, a acusação romântica será repetida na história intelectual contemporânea, já agora, em geral, emitida pela boca dos existencialistas. O estruturalismo, com o seu pendor anti-histórico, transformaria em terra arrasada exatamente o reino onde se exercita a liberdade humana, a história. A experiência singular estaria subsumida em marcos organizadores previamente postos, na mesma medida em que a individualidade seria apenas uma variação. Aos românticos caberia a apologia ao fragmento, como escada para aquilo que ultrapassa todo e qualquer sistema, como a intuição do absoluto. Dos antigos, por exemplo, tal como de suas estátuas, muitos escritos somente chegaram a nós na forma de fragmentos. De outros autores, como Platão, parecia que suas obras possuíam um caráter fragmentário, desconexo. Sob o influxo do conceito kantiano de sistema, alguns pesquisadores apontaram como necessidade filosófica e filológica de estabelecer as doutrinas dos filósofos antigos, o que significa extrair deles um sistema. Contrários à violência que seria a construção artificial de um sistema, muitas vezes irreconciliável com a letra do texto, Friedrich Schleiermacher, um romântico, amigo daqueles dois outros românticos, os irmãos  Schlegel, propõe uma novo método filosófico e filológico para a tradução, classificação, ordenação cronológica e validação autoral das obras de Platão.

O que me interessa em Schleiermacher é o processo de transferência da estrutura da interioridade do texto rumo à interioridade do autor, o que torna possível os discursos sobre estilo individual do texto, momentos do desenvolvimento da obra, unidade das obras. Destaque deve ser dado ao fato de que Platão é exatamente aquele autor que, circunstancialmente, aponta para a saída do texto e para a insuficiência do texto. Muitos aqui, de pronto, logo recordarão da famigerada querela sobre a doutrina não escrita de Platão. A solução do caso aqui pouco nos interessa, sendo mais interessante o mecanismo operado por Schleiermacher para tornar irrelevantes as suposições sobre uma doutrina não escrita. Em verdade, o que desejamos observar é como Schleiermacher sai do texto para assegurar o texto, ou melhor, como apreender o espírito para que o texto seja a última palavra.

Aquele que se debruçar sobre a Introdução geral aos diálogos de Platão[10], encontrará alguns temas centrais para a metodologia de Schleiermacher: a ideia de estilo, a compreensão de Platão como um artista, a relação entre forma e conteúdo. O problema enfrentado é a suposição de uma aparência fragmentária da obra de Platão, sem que nenhuma obra específica pareça expor o todo da sua doutrina. Mediante a falta de uma cronologia explicita, o que seriam as obras elementares para o ingresso na filosofia platônica, e o que seria a obra que já contasse com pressupostos trabalhados, também parecia indiscernível. O todo da obra de Platão, para Schleiermacher, certamente não faz um sistema, se o sistema for pensado como a exposição dos princípios elementares e a derivação conceitual a partir deles. O sistema de Platão não pode ter um reflexo na geometria euclidiana ou na Ética de Spinoza. Contudo, também Kant já não tinha a suposição de um sistema segundo o modelo geométrico, uma vez que seu conceito de Ideia significa a totalidade de partes entre si codeterminadas, de modo tal que o sistema seria fechado, obedecendo ao aspecto de conformidade a fins: cada parte está posta tendo em vista não somente outra parte, mas o todo. O tratamento desse aspecto da Ideia ocorre na Crítica da Faculdade de Julgar, com a finalidade de esclarecer não somente os princípios que fundamentam o ajuizamento estético, mas também os princípios que regulam a investigação da natureza, em especial dos seres vivos. Platão seria um gênio, conceito esse também forjado na Crítica da Faculdade de Julgar, cuja força plástica está materializada em sua obra. A unidade da obra de Platão está dada pela unidade do seu gênio criativo, do seu espírito, unidade essa somente apreensível se compreendermos as etapas do seus desenvolvimento, da mesma forma como uma semente germina em flor segundo etapas. Cada momento, por seu turno, traz nele uma unidade em si, porque, em um corpo orgânico, a relação entre as partes se dá por razões intrínsecas, não por mera justaposição mecânica. A aparente contradição no interior da unidade também se justifica a partir da organicidade do espírito do autor, porque Platão, evidentemente, é um artista pedagogo, o que se expressa na forma dialógica dos seus escritos. Se o método dialético, de caráter científico, parece pouco conforme aos momentos de narrativa mítica que despontam no diálogo, tal conflito é dissolvido pelo propósito educativo: o mito é uma instância preparatória, um jogo da imaginação, que carrega as sementes do que será desenvolvido racionalmente.

Temos aqui o espírito do autor, essa instância meta-humana com a qual o ritual do texto tenta se conectar. É sob a sua égide que se faz possível a pretensão de alcançar a verdadeira intenção do autor, ou que permite proferir juízos como: a intenção própria não era essa. Enquanto materialização ou expressão do seu espírito, o texto se converte no em si mesmo para o qual as atenções devem estar voltadas. O gesto de Schleiermacher imita o próprio gesto de Martinho Lutero, que decreta absoluta autossuficiência das escrituras, em confronto com as práticas católicas de que o Espírito Santo pudesse trazer esclarecimentos sobre o texto sagrado a partir do corpo da Igreja.  É exatamente esse esquema que permitirá, em muitas ocasiões, a repetição do topos clássico referentes aos rituais: os rituais são meras repetições mecânicas vazias de espírito; os rituais são convenções repetitivas que sufocam a liberdade criativa do indivíduo. No caso de Schleiermacher, uma externalidade complementar, a partir de uma suposta doutrina não escrita, seria absolutamente irrelevante, na medida em que tudo aquilo que fosse dito fora do texto seria comunicado exatamente pelo mesmo espírito que produziu o texto. Para Lutero, o espírito de Deus se encontra nas escrituras, não havendo nenhuma externalidade esclarecedora ou complementar.

  A hermenêutica de Schleiermacher termina por ser uma Sitz im Schriff, uma contextualização dos escritos pelos escritos, sendo a sua Sitz im Leben uma contextualização vital através da vida ou do espírito do autor. Esse procedimento merece desmoronar, porque tudo se passa como se ninguém tivesse de comprar um pão, reparar um móvel, produzir uma sapato, e tantas outras ações externas ao texto que são apontadas no interior do texto. Em muitos casos, simples menções de ações cujo sentido estava subtendido pelo contexto receptivo da obra, pelos leitores ou ouvintes. É surpreendente a dificuldade que temos de levar em conta o contexto de recepção, também entendido como o contexto performático de emissão e transmissão da obra, fatores esses já decantados pela estética da recepção, de Robert Jauss[11]. Dependendo da pergunta que façamos, não há a mínima relevância se o texto Teologia pertence ou não a Aristóteles, uma vez que a recepção do seu conteúdo é crucial para debates na Idade Média. De igual maneira, a intensão intrínseca do autor não tem a menor importância diante dos efeitos das discussões desencadeadas e do diálogo travado com o texto para a resolução de determinados problemas. Notemos aqui um descompasso com a Sitz im Leben praticado no contexto dos estudos bíblicos, em que as análises estilométricas e estilísticas são acompanhadas por descobertas arqueológicas e tentativas de reconstrução histórico-sociais.

Aquele que supuser que as observações aqui lançadas apenas valem para um modo continental de praticar a história da filosofia, bem pode encontrar objeções simulares dirigidas ao que ficou conhecido como corrente analítica de historiografia da filosofia. Após expor as benéficas ausências de fronteiras entre os estudos de filosofia antiga e os estudos das religiões antigas, congeminação vigorosa do final do século XIX até meados do século XX, os efeitos do método analítico são assim apresentados por Pierre Vesperini, no artigo intitulado Philosophie et cultes à mystères: d’une historiographie l’autre[12]. Permitam-me fazer uma longa citação, pois ela também justificará tudo o que antes foi dito, ao mesmo tempo que suportará as análises subsequentes:

Há um século, na grande época da Altertumswissenchaft o sentido “teológico” da palavra filosofia era óbvio. Não se tinha nenhuma dificuldade de fazer notar as confluências entre filosofia e culto de mistérios. Na herança conjunta de idealismo e romantismo alemão, a história das religiões antigas, tal como se praticava no interior da Altertumswissenschaft, por meio de uma filologia atenta às coisas (Sachphilologie) e de um resoluto comparatismo, a própria evolução do espírito humano, das origens primitivas, ainda selvagens, forçosamente religiosas, até a época de sua emancipação. E o religioso constituía o fio condutor dessa evolução: ocorria aos historiadores das religiões mostrar como o homem passou dos ritos os mais selvagens à espiritualidade do europeu cultivado do século XIX, ao homem da Bildung, ao indivíduo livre e singular, tal como o queria Humboldt e tal como ainda o quer Chomsky. Os cultos de mistérios, que eram representados como provenientes do Oriente, e as escolas filosóficas, constituíam etapas essenciais desse processo, o qual havia permitido à Grécia sair da religião homérica – descobrindo a “alma”, venerando o “deus desconhecido” - para se orientar em direção a uma religião espiritual. O caráter “religioso” da filosofia antiga não impunha nenhuma dificuldade. Ao contrário, porque ela tinha sido religiosa que ela pôde, como os cultos aos mistérios, preparar o espírito humano a se desembaraçar do politeísmo, do mito, do rito, do coletivo, em suma, de tudo aquilo que, para um erudito alemão do século XIX, feria a emancipação do indivíduo, e das quais ainda se via as manifestações na liturgia do catolicismo e as monstruosas loucuras que ele suscitava nos pobres de espírito.

Esses historiadores, indissociavelmente historiadores do religioso e do filosófico, uma vez que historiadores do Espírito (Geist), estavam atentos a tudo o que distinguia os Antigos dos Modernos, e por isso seguiam as descobertas da antropologia (ela mesma marcada pela herança romântica, permanecendo profundamente marcados, é preciso insistir, pela idealização classicista da Grécia. Pouco preocupados com as “fronteiras policialescas” separando as disciplinas, eles deveriam, e em primeiro lugar o mestre de todos Hermann Usener, ter uma irradiação em todas as ciências humanas: sobre a sociologia alemã (Weber), sobre a francesa (Durkheim e Mauss), sobre a história da arte (através de Warburg), da literatura (Propp), sobre a história da cultura em geral (Burkhardt, Huizinga), sobre a psicanálise (Freud, Jung), sobre a filosofia (Cassirer, Natorp, sem falar de Nietzsche), e mesmo sobre a teologia protestante (Troeltsch, Bousset).[13]

Após citar uma série de obras alemães, francesas, italianas e anglo-saxãs ainda incontornáveis, produzidas a partir da tradição referida, Vesperini indica uma das condições tanto do seu obscurecimento quanto do refreamento do seu método:

Com efeito, desde alguns decênios, uma linha de demarcação está claramente traçada entre “filosofia antiga” e “religiões antigas”.  Os filósofos antigos parecem desde então como “colegas”. Isso se deve ao menos a cinco fatores. De uma parte, a influência da historiografia anglo-saxã, em que, face à hegemonia da filosofia analítica, a história da filosofia somente pode justificar sua existência servindo à filosofia analítica, portanto, limitando-se a uma história doxográfica restrita às problemáticas dos filósofos analíticos atuais e, por certo, inteiramente abstrata. É evidente, nestas condições, que pôr à luz a alteridade da filosofia antiga seria uma atitude institucionalmente e profissionalmente suicida.

As críticas de Pierre Vesperini à filosofia analítica são compartilhadas pelo historiador da filosofia medieval, John Marenbon. Reconhecendo o peso demasiado do título, Marenbon profere, em 2017, a conferência Por que não devemos estudar Aquino[14]. Não nos concerne aqui a reconstrução de todos os argumentos, mas vale ressaltar que o objetivo de Marenbon é questionar a hiperinflação dos estudos sobre São Tomás em detrimento de outros filósofos medievais. Uma das razões da supervalorização de Tomás seria sustentada pela corrente analítica a partir do argumento da relevância. Demonstrado que outros filósofos medievais possuem tanta relevância quanto Aquino, seja pela excelência teórica, seja pela abrangência de escopos filosóficos, o filósofo analítico confessa que não possui tempo para estudar os medievais, que Tomás seria uma porta de entrada mais notória como solo compartilhado a partir do qual se estabelece uma discussão, e que a razão fundamental de algum interesse por Tomás não está nele mesmo, mas na ocasião que fornece para resolver problemas. Eis, portanto, que encontramos a rachadura que separa duas categorias: os supostamente filósofos em si, que tentam resolver problemas ditos filosóficos, e os historiadores da filosofia, um subgrupo ancilar. Se não se pode convencer o solucionador de problemas filosóficos sobre a importância de contextualizar, reconhecer as condições de discussão, os filósofos supostamente menores que participavam dos debates ao redor de Aquino, já que tudo isso seria irrelevante para resolver um problema, então Marenbon sugere que ouvir uma música, passear com o cachorro ou ler um romance policial também pode ser circunstância inspiradora para a resolução de problemas, e muitas delas bem mais agradáveis.

O filósofo analítico tem no texto antigo a simples ocasião para a produção de novos textos, o que pode ter resultados embaraçosos. Se o historiador da filosofia não pode convencer o analítico sobre a relevância do seu trabalho intelectual em si mesmo, então, ao menos em termos institucionais, ambos deveriam estar em pé de igualdade, porquanto seriam áreas disciplinares autônomas. Contudo, permanece, ao menos, como vantagem para o historiador da filosofia, ter a possibilidade de reconhecer a história de formação do seu próprio campo, e as diferenças no modo de fazer filosofia, o que pode funcionar como justificativa institucional para a sua legitimidade. Não será sem dificuldades que o filósofo analítico, a partir do límpido céu sem atmosfera dos problemas filosóficos, conseguirá justificar perante as outras disciplinas a existência de problemas estritamente filosóficos? Igualmente, não é sem algum constrangimento que o historiador da filosofia observa a apropriação feita de algumas obras ou de alguns argumentos, sem a devida contextualização, que acaba por distorcer ou tornar irreconhecível as ideias de um autor. Nesta crítica, Marenbon tem por alvo particularmente as correntes da filosofia analítica que se apropriam de Aquino para respaldar filosoficamente determinados grupos religiosos, contorcendo suas reflexões para que caibam no contexto da ciência contemporânea.

Julgo que agora convenha um melhor esclarecimento do que tenho chamado de saída da textualidade ou da ordem discursiva. Evidentemente, não se trata aqui nem de abandono do texto, muito menos de um apelo ao mutismo. Como não pretendi falar a partir da pura abstração, tenho até o momento exposto uma forma de se fazer filosofia que carrega determinados parâmetros normativos referentes ao que é considerado filosoficamente relevante em um texto, uma pretensa circunscrição disciplinar da filosofia, uma forma de tratamento das reflexões filosóficas. O contexto de um texto, a sua historicidade, está naquilo que ele aponta para as suas circunstâncias, para o peso ou valores de um rede semântica somente qualificável por meio comparativo, os ecos ou recepções que o texto possui, estes capazes de performar uma cadeia de retroalimentação responsável por camadas de sentido. A ausência de tais fatores torna dubitável a possibilidade de compreender os diferentes modos de fazer filosofia, para além das esdrúxulas abstrações sobre sistemas diferentes, diversidade de formas de pensar, as trevas profundas sobre qualquer coisa ser filosofia, ou o slogan anódino de que filosofar é pensar criticamente. A filosofia, também em suas formas históricas de fazer filosofia, é absolutamente insubordinável às delimitações disciplinares, tanto sob o ponto de vista de que os objetos disciplinarmente múltiplos são relevantes para a compreensão de um campo que historicamente está para além do disciplinar, seja porque a filosofia participou e participa da constituição de diferentes campos, como fonte teórica, muito mais do que na condição de discurso de segunda ordem ou de meta-análise epistêmica. Sem essa contribuição de diferentes campos, permanecerão como motivos de escândalos os trabalhos que mostram a existência de um culto dentro da Academia de Platão; ou que o Liceu, de Aristóteles, era uma instituição tão religiosa quanto os Jardins de Epicuro[15]. Sem filosofia, a qual é constitutiva de toda e qualquer teoria da história, não é possível desmontar aquele pressuposto que transformam a Atenas de Péricles em espelho do iluminismo, ou que defende a descabida teoria da história sobre uma Era Axial[16].

Quero supor que o leitor, por si mesmo, já possa inferir como a destruição de determinados pressupostos da máquina da excelência, suposições essas raizadas em teoria da história ou em antropologia filosófica, não somente permitem a entrada da diversidade de outras formas de fazer filosofia, mas mostrar a própria diversidade na maneira de realizar a historiografia do passado canônico da filosofia. O cânone nunca foi somente um conjunto de textos, mas sim um conjunto de procedimentos discursivos e analíticos, os quais também podem massacrar fontes diversificadas, como quando convertemos Confúcio em um espelho do Iluminismo. A diversidade agora não se abre somente para diferentes textos, mas reconhece a necessidade de diferentes campos teóricos e mesmo a atenção para práticas supostamente externas ao campo filosófico: objetos arqueológicos, práticas rituais, performances. O suposto rigor absoluto da instituição era apenas um rigor mortis; e a excelência metodológica unívoca talvez seja apenas o fantasma que anima a máquina.

 

 

 

[1]FOUCAULT, Michel (2023).  Le discurs philosophique. Paris : Seuil/Gallimard.

[2] GUEROULT, M (1979). Dianoématique. Livre II : philosophie de l’histoire de la philosophie. Paris : Aubier Montaigne

[3] Cf. SACHOT, M (1998). La invención  de Cristo : génesis de una religión. Tradução de Armando Ramos Garcia. Madri: Biblioteca Nueva

[4] Cf. ANÔNIMO (2021). “Didaqué”. In: Coleção patrística: padres apostólicos. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus.

[5] A interpretação da Crítica da Razão Pura feita pelo próprio Gueroult apareceu recentemente, com a publicação do curso sobre Kant ministrado no Collège de France nos anos 1957-1958. A obra está disponível para acesso gratuito na página: https://www.college-de-france.fr/fr/actualites/parution-la-critique-de-la-raison-pure-de-kant-martial-gueroult

[6] VUILLEMIN, J. (2009). What are philosophical systems? Nova York: Cambridge University Press.

[7] Idem (1996). Necessoty or contingency.California: CSLI Publications.

[8] Cf. ROBERTSON SMITH, W. (1896).  Lectures on the religion of the semites. Londres: Adam and Charles Black

[9]Cf. STAAL, F (1996).  Ritual and Mantras: rules without meaning. Deli: MOTILAL BANARSIDASS PUBLISHERS

[10] SCHLEIERMACHER, F (1838). Introductions to the dialogues of Plato. Tradução de William Dobson. Londres: John William Parker

[11] JAUSS, H. R. (1978). Pour une esthétique de la réception. Tradução de Claude Maillard. Paris : Gallimard.

[12] VESPERINI, Pierre (2017). « Philosophie et cultes à mystères : d’une historiographie l’autre ». N. Belayche et F. Massa (éd.), actes de la journée d’études Les philosophes et les mystères dans l’Empire romain, Fondation Hardt.

[13]  Idem. Ibidem. Por falta de paginação na fonte eletrônica, não podemos oferecer o lugar preciso da citação. De todo modo, o artigo se encontra disponível em: https://hal.science/hal-03101128/document (acessado em 30/06/2023)

[14] MARENBON, John (2017). Why we shouldn’t study Aquinas. Texto disponível em: https://www.academia.edu/32902867/Why_we_shouldnt_study_Aquinas. Acesso em 30/06/2023.

[15] Creio que alguns filósofos podem suspeitar de um cheiro de sacristia ou odores de velas ao se mencionar os nexos entre discurso filosófico e práticas religiosas na Antiguidade. Tais pruridos são derivados de uma série de pressupostos histórico-filosóficos sobre o que seja religião, os quais aquele que assume a pretensão de ser historiador da filosofia deveria, ao menos, explicitar, na medida em que constituem, em geral, suposições em teoria da história e em antropologia. A ausência dessa discussão acaba como torturar as fontes antigas até que se convertam em espalho de nós mesmos, por meio de instrumentos conceituais forjados na modernidade em prol de sua autolegitimação. Apenas cito algumas fontes para exemplificar trabalhos consistentes que demonstram tais nexos práticos: BOYANCÉ, Pierre (1937): Le culte des muses chez les philosophes grecs. Paris : Boccard Editeur; VESPERINI, Pierre (2019). La philosophie antique. Paris: Fayard ; PHILODEMUS (1996). On Piety. Critical text with commentary. Editado e traduzido por Dirk Obbink.Oxford: Clarendon Press.

[16] Apenas como um dos exemplos de crítica à teoria de uma Era Axial, esse constructo em filosofia da história igualmente capaz de aniquilar a diversidade, conferir: ASSMANN, Jan (2014). From Akhenaten to Moses: Ancient Egypt and religious change.