Ao vencedor, as batatas!

solange Aparecida de Campos Costa

13/07/2023 • Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq

“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”[1] (1997. p. 648-649)

Machado de Assis expõe com uma ironia mordaz a teoria da Humanitas em seu Quincas Borba. Baseada na guerra e na destruição como fonte de conservação e afirmação, ela garante somente a poucos e resistentes lutadores o direito ao campo farto das batatas. Teoria não apenas ficcional e literária (ouso dizer!), ela dominou e infelizmente, com raras exceções, continua a dominar o locus filosófico. Pode parecer exagero a comparação, mas é assim nesse clima de disputa e premiação que acontece a maior parte dos reconhecimentos acadêmicos. E as bolsas de excelência em pesquisa não se situam fora dessa condição. Ainda que dentro dos espaços acadêmicos as guerras sejam abrandadas e veladas pelos discursos de inclusão e respeito à diversidade, os dispositivos de controle, como regimentos e currículos, continuam a se manter distante de políticas verdadeiramente democráticas.

Sim, é inegável que graças às ações afirmativas as universidades possuem hoje um número mais expressivo de estudantes de escolas públicas, negros e indígenas, por exemplo, mas o mesmo não acontece nas instâncias superiores. Os estudantes de doutorado em filosofia, os professores das pós-graduações, os bolsistas produtividade do CNPq são em sua grande maioria homens brancos, oriundos da classe média do sul e sudeste.[2] Esse fórum mesmo, com exceção do primeiro artigo publicado pela diretoria da ANPOF (e portanto, provavelmente, fruto de uma produção coletiva), todos os demais, os cinco subsequentes, são de autoria de professores homens. Com isso não quero desmerecer a abordagem dos demais colegas, por favor, aliás gostei muito do tensionamento do debate provocado pela leitura dos artigos anteriores e de suas enormes contribuições, mas o fato de não ter nenhuma mulher entre eles é bastante revelador. A filosofia, a despeito de todas os ganhos com as ações afirmativas dos últimos anos, ainda é um ambiente bastante misógino e excludente.

O artigo que abre esse fórum expõe em números essa disparidade, quanto as bolsas produtividade.[3] Dos 173 bolsistas produtividade do CNPq em Filosofia, apenas 33 são mulheres, o que equivale a 17% do total de pesquisadores. A dissimetria é enorme, ainda mais se levarmos em consideração a questão racial, pois o número de mulheres negras recebendo bolsa produtividade não pode sequer ser aferido com precisão.

Com a evidência tácita dessa desigualdade de gênero e raça (entre outros que podem ser apontados) nas distribuição das bolsas, o que nós podemos fazer para mudar esse quadro? Para isso provavelmente não há uma resposta única que dê conta rapidamente de mudar esse cenário. Até porque os comitês de assessoramento (CA’s) que decidem os destinos das bolsas, como aponta o próprio artigo da diretoria da ANPOF, é composto majoritariamente por pesquisadores PQ de nível 1 (portanto, a maioria deve ser constituída de homens brancos), ou seja, segundo essa premissa, dificilmente a realidade da distribuição de bolsas vai mudar a curto prazo. Claro, que reconhecer a disparidade já é um avanço e, nesse sentido, esse fórum se mostra também como um aceno positivo, mas somente com uma mudança estrutural, tal discrepância pode ser desfeita. E mudar a estrutura é sempre desconfortável, porque impõe necessariamente desfazer a ordem já legitimada e com a qual estamos normalmente acostumados a lidar.

Então, é preciso nessa perspectiva não apenas reconhecer privilégios, mas questioná-los e, mais do que isso, se recusar a aceitar essa condição. A pergunta que fica então não é mais: “quem quer ceder o seu lugar de privilégio?” mas “No que essa condição de privilegiado se sustenta?” Para mim, ela se sustenta na exclusão daqueles que sequer podem concorrer de maneira equânime aos mesmos benefícios. A bolsa de excelência em pesquisa evidentemente não é um mero privilégio, não é um prêmio outorgado de maneira aleatória, mas o resultado de uma longa trajetória dedicada à pesquisa, do reconhecimento do trabalho e do comprometimento do pesquisador com a produção filosófica. Mas quando ela é distribuída de modo a contemplar sempre uma mesma classe, raça ou gênero, ela carrega sim, traços dessa sociedade meritocrática que nos esquivamos continuamente em reconhecer. Por isso, minha proposta aqui é ainda mais radical. Mais do que simplesmente discutir teoricamente essa temática é preciso transgredir essa estrutura na qual a disparidade do reconhecimento de excelência se funda. E ele se funda sobre mim e você que lê esse texto. Na nossa apatia diante do cenário que se repete ano após ano, premiando sempre os mesmos notáveis pesquisadores. É certo que nós admitimos a desigualdade, apoiamos a causa da necessidade de mudança, mas dificilmente fazemos algo para mudá-la. Porque mudá-la impõe questionar o lugar que ocupamos, mudar impõe refazer o modo como estruturamos nossas aulas, como discutimos os assuntos em sala, como compomos as bancas de concurso, como estabelecemos os critérios de excelência dentro e fora da filosofia. Mudar impõe a difícil tarefa dizer não. Por isso convido cada um a repensar esse lugar e dizer não quando a situação for declaradamente desigual. E isso apesar de soar estranho, pode começar com atitudes simples como refazer os ementários das disciplinas (incluindo pensadoras negras, latino-americanas, LGBTQIA+, indígenas, etc), ou mais complexas como questionar a forma como os comitês de assessoramento são formados e se recusar a fazer parte de bancas de concurso ou de seleções nas pós-graduações que não espelhem a diversidade na sua formação (e questionar os programas e órgãos superiores quanto a isso!). Proponho nesse sentido, que criemos comissões de avaliações regimentais nas universidades e que estas comissões sejam plurais e diversas. Que elas possam discutir e refazer (mesmo percorrendo toda a tarefa burocrática necessária) os ordenamentos legais que estruturam os cursos de filosofia no Brasil, que são em sua gênese misóginos, racistas, brancos e eurocêntricos. Esse é apenas um passo (hercúleo, confesso!) entre tantos outros que podem ser discutidos ao longo desse fórum.

Quanto às bolsas de excelência em pesquisa, convém demonstrar publicamente, tal como estamos fazendo nesse fórum, nossa discordância e indignação, na forma como elas vêm sendo distribuídas. Espero que ao final da discussão aqui travada também encaminhemos ao CNPq um texto com uma outra proposta de formação desses comitês, que seja mais representativa e democrática. Pode ser que esse tipo de atitude não provoque imediatamente alguma mudança, mas com certeza, demonstrará que os critérios de avaliação das agência de fomento (assim como as das nossas instituições) precisam ser revistos e que admitir essa necessidade já é um avanço.

De todo modo, também é preciso admitir outro ponto, mais espinhoso ainda: a filosofia estimula a vaidade acadêmica. E essa vaidade ambiciosa, por vezes arrogante, exclui e desumaniza aqueles que não pertencem ao grande círculo da elite intelectual da filosofia, esta que estabelece os critérios de excelência, porque se sente como sua fiel dignitária. É nesse tabuleiro desigual que se opera a separação entre aqueles que tem direito e os que não tem direito a fartura das batatas, que anunciava Quincas Borba. Que possamos então vencer a vaidade e o gosto pelas honrarias públicas individuais, mostrando que a própria guerra, que nos coloca uns contra os outros, separando os merecedores dos indignos, é perniciosa e ilegítima.

A imagem retratada por Machado de Assis, me fez lembrar também da resposta de Virginia Woolf em Três guinéus. O livro é composto por cartas nas quais Woolf se dirige a um nobre senhor da burguesia que lhe perguntou qual era sua visão para prevenir a iminente Segunda Guerra Mundial, no entanto, o nome deste senhor nunca foi revelado. Há quem acredite que ele é ficcional, apenas como pretexto para Woolf escrever seu manifesto feminista e pacifista sobre o assunto. Na obra, a autora responde por carta como podem as mulheres se antepor à guerra. De modo irônico, ela afirma:

Parece que não podemos pedir-lhes para fazerem coisa alguma; elas devem seguir pela velha estrada em direção ao velho destino; nossa própria influência como outsiders só pode ser das mais indiretas. Se formos solicitadas a lecionar, podemos examinar muito cuidadosamente o objetivo desse ensino e nos recusar a ensinar qualquer arte ou ciência que estimule a guerra. Além disso, podemos expressar certo desprezo às capelas, aos graus acadêmicos e ao valor dos exames. Podemos dar a entender que um poema premiado ainda pode ter algum mérito a despeito de ter obtido um prêmio. Se formos convidadas a dar uma conferência, podemos nos recusar a promover o vão e vicioso sistema das conferências recusando-nos a dar conferências. E, naturalmente, se nos forem oferecidos títulos e honrarias, podemos recusá-los – como, aliás, em vista dos fatos, poderíamos proceder de maneira diferente?[4]

Sejamos assim também outsiders, não cedendo à lógica excludente que justifica a disputa e a valor exacerbado das láureas acadêmicas. Nesse caminho, podemos aceitar a bolsa produtividade, mas ao mesmo tempo questionar a sua forma de distribuição; precisamos estar presentes nos programas de pós-graduações (senão quem poderia orientar as alunas e alunes que divergem da norma?), nas conferências e eventos, mas também nesses lugares podemos nos contrapor à falta de incentivo ao ingresso e permanência de alunos que não ocupam lugar de privilégio na sociedade. Por fim, não aceitemos o bordão: “ao vencedor, as batatas”, pois podemos criar outras estratégias para que todos tenham direito e oportunidade de apreciar e dialogar no banquete filosófico, que incluirá muito mais do que apenas batatas!

 

 

 

[1] ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 648-649.

[2] Quanto à desigualdade de gênero nas pós-graduações, vale ressaltar o importante levantamento realizado pela Rede Brasileira de Mulheres Filósofas disponível em https://www.filosofas.org/quantas, o documento elaborado pela ANPOF https://www.anpof.org.br/wlib/arqs/aanpof/34.pdf  e também a mesa de debates apresentada no último encontro ANPOF (outubro de 2022) disponível pelo YouTube no link: https://www.youtube.com/watch?v=nwieD77WoRI

 

[3] Artigo disponível em https://anpof.org.br/forum/bolsas-de-produtividade-em-pesquisa-do-cnpq/-pela-ampliacao-da-excelencia-uma-radiografia-das-bolsas-de-produtividade-em-pesquisa-do-cnpq

 

[4] Woolf, Virginia. Três Guinéus.  Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 45.