As políticas da filosofia e uma proposta radical: demitam-se
Aluízio de Araújo Couto Junior
19/07/2023 • Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq
Li com interesse a recente intervenção (12/07) do professor Edson Teles (Unifesp) neste Fórum da Anpof. Em linhas gerais, Teles aponta um conflito entre a manutenção de uma abordagem filosófica eurocêntrica, tradicional entre nós e com pretensões hegemônicas, e a emergência de outras formas de filosofar, como os pensamentos afro-brasileiros e ameríndios. Segundo Teles, o status quo, para perdurar, dependeu de “estruturas de dominação”. O professor aponta que nossa “forma social”, instrumental no processo de formação de subjetividades, “oportunizou o estabelecimento dos cânones e das histórias ensinados em nossos departamentos e cursos de Filosofia”. Dado que essa situação é injusta, Teles celebra o recente aumento do espaço dado às formas dissidentes de fazer filosofia, cuja presença, entre outros fatores, deve-se tanto à presença intelectual dos movimentos sociais na universidade quanto à maior atenção dada por pesquisadores a autores pretos.
Não pretendo me opor a isso. O que me motiva a escrever esta curta provocação é a sugestão de Teles ao fim do texto. Ele propõe que os próximos concursos em universidades devam ser destinados a vagas “acerca dos pensamentos africano, afro-brasileiro, afro-americano, caribenho, ameríndio, asiático, feministas, entre outros.” E dada a proximidade pressuposta entre temáticas e identidades, é de se supor que essas vagas obedeçam, sob pena de violações de lugares de fala, critérios raciais e de gênero. Minha proposta aqui é aceitar o pressuposto de Teles a respeito da injustiça histórica que molda a filosofia no país e defender que, então, é razoável que certo número de professores estáveis (preferencialmente brancos), em nome de ideais de justiça, demita-se para abrir mais vagas para pessoas em desvantagem e formas subalternizadas de filosofar. Meu primeiro argumento, inspirado em “Anarquia, Estado e Utopia” (1974), de Robert Nozick, mobiliza a ideia de retificação. O segundo apela para o compartilhamento dos sacrifícios em uma comunidade.
De maneira muito resumida, a teoria da justiça de Nozick estabelece as condições justas de aquisição e transferência de propriedade. Uma maneira não muito detalhada mas útil de entender a teoria é a seguinte: suponha um mundo em que nenhuma aquisição inicial de propriedade prejudicou alguém e todas as transferências subsequentes foram voluntárias e feitas por titulares legítimos. Em outras palavras, um mundo em que todos os atos de apropriação de recursos da natureza são justificados e ninguém furtou, roubou ou fraudou ninguém no longo processo de transferências de propriedade a partir dos atos iniciais de apropriação. Nesse mundo, nada há que se retificar. Justiça e delimitações atuais de propriedade coincidem. Porém, caso uma apropriação inicial não respeite as condições justas de aquisição, a propriedade correspondente deve voltar aos comuns; caso a injustiça esteja na transferência, a propriedade deve retornar a quem seria seu titular de direito. A teoria de Nozick é histórica: a justiça e a falta dela remetem ao que ocorreu no passado. Por isso mesmo, as retificações têm caráter retrospectivo. Não bastaria criar, por exemplo, procedimentos de transferência mais seguros para serem seguidos só a partir de agora. É preciso, na medida do viável, tirar de quem, por ter se beneficiado de injustiças pregressas, não tem direito e dar a quem tem. De fato, seria estranha uma teoria histórica capaz de apontar injustiças no passado que ao mesmo tempo não propusesse as retificações retrospectivas correspondentes, poupando os beneficiários presentes das injustiças ocorridas.
O ponto de Teles, naturalmente, não diz respeito à propriedade privada em sentido nozickiano. As semelhanças, porém, justificariam uma conclusão análoga, a que ele não chega. Vejamos: ele se compromete, no segundo parágrafo, com a existência do que poderíamos chamar de “condições iniciais injustas de formação da atividade filosófica no Brasil” (origem eurocêntrica) e de “condições injustas de prosseguimento da atividade filosófica no Brasil” (o processo de institucionalização, análogo aqui a atos injustos de transferência). Essas formulações, feitas em termos nozickianos de injustiças originais e subsequentes, são uma forma de capturar as ideias de que a “estrutura” inicial era excludente e de que o que veio depois ocorreu dentro dessa mesma estrutura, isso quando não a reforçou. Tal como na teoria de Nozick, portanto, o que fundamenta o sentimento de injustiça no texto de Teles é o relato histórico, repleto de exclusões e usurpações. Porém, diferentemente de Nozick, o remédio proposto ao fim do texto não toca nos cargos de quem se beneficiou das injustiças pregressas. Sua sugestão se limita a jogar para o futuro a resolução do problema. Isto é, trata-se de um argumento de fundo histórico que evita a ação retificativa (e retrospectiva) sobre algo importante e que pode ser retificado: parte das vagas já existentes. É preciso explicar por que o remédio evita precisamente a imposição de sacrifícios sobre alguns dos principais beneficiários do problema.
Meu segundo argumento, um tanto mais simples, é o seguinte: se participamos de uma comunidade e temos uma injustiça histórica a retificar, deveríamos, na expressão que ouvi de um bom filósofo, evitar a mera terceirização do sacrifício. Para simplificar, imagine uma comunidade, unida por valores e interesses comuns, com três tipos de pessoas: A, B e C. As pessoas A vivem confortavelmente da discussão e administração da comunidade. As pessoas B querem estar onde estão A, mas ainda não conseguiram chegar lá. As pessoas C, por fim, além de compartilharem com as B o desejo de ocupar vagas como as de A, foram, por razões injustas, sistematicamente excluídas. Muitas das pessoas A se beneficiaram da exclusão das pessoas C (historicamente, os termos das discussões e os procedimentos de administração da comunidade prescindiram da contribuição das C); as B, em geral, embora não estejam onde querem, não podem dizer que sofreram as injustiças por que passaram as C. Se essa comunidade fosse a filosofia brasileira, o ponto de Teles, aparentemente, estaria confortável com o fato de nenhum A arcar com qualquer sacrifício significativo em prol das C, colocando assim todos os encargos da justiça sobre prováveis desempregados que não podem atuar nos tópicos mencionados pelo professor. Ora, é plausível sustentar que vida em comunidade pressupõe não apenas benefícios comuns, mas custos comuns que devem ser distribuídos levando em consideração aspectos como posição e status. Não devemos fingir que não há sacrifícios envolvidos aqui. O tratamento preferencial em prol das pessoas C muito provavelmente acarreta menos vagas para as B. Dada a história, talvez a imposição desse sacrifício seja justa mesmo (não pretendo discutir isso). Porém, certamente injusto, talvez pela crença na sacralidade do cargo público, é que as A, que não costumam perder oportunidades de reconhecer publicamente as desvantagens das C, não façam qualquer sacrifício à altura do problema. Pois bem: se um punhado de A’s abandonarem, em nome da justiça retificativa, seus cargos em nome das C, elas também terão a grandeza de aliviar os custos das B, o que parece razoável em uma comunidade.
Em suma: o ponto de Teles, embora histórico, parece não chegar à sua devida consequência e, caso encaremos a filosofia brasileira como uma comunidade, distribui os sacrifícios de maneira injusta (repare que a primeira falha parece acarretar a segunda, uma vez que a ausência de medidas de cunho retrospectivo concentra as ações de maneira prospectiva, sobrecarregando as pessoas B, postulantes a vagas futuras). Por outro lado, se um punhado de pessoas A arcarem com certos sacrifícios, a retificação e a justa distribuição dos sacrifícios serão satisfeitas.
Será que um processo verdadeiramente decolonial aceitará comprometer o bem-estar do status quo, solidificado por décadas de cursos e concursos que excluíram as “filosofias outras”? Remetendo-me uma última vez uma vez ao texto do professor Teles, segundo o qual devemos nos inspirar nos “corpos que resistem ao modelo colonial faz séculos”, será que a “ação contracolonial” encontrará sua desconfortável mas necessária radicalidade? Quem vai ser o primeiro a dar o exemplo?