Bolsas de produtividade como mecanismo reprodutor de injustiça epistêmica a partir da teoria da construção de nichos

Felipe Carvalho

27/07/2023 • Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq

Embora resquícios de uma epistemologia cartesiana individualista ainda persistam na filosofia contemporânea, tem havido um consenso cada vez maior de que práticas e métodos de aquisição e justificação de conhecimento são constitutivamente sociais, nos conectando com outros membros de nossas comunidades epistêmicas em um projeto mútuo – embora plural – de construção e administração de nosso capital epistêmico coletivo. Para que esse projeto floresça e gere bens epistêmicos para toda a comunidade, é preciso que esta se abra a uma pluralidade de perspectivas e modos de conhecer, como um antídoto para vícios epistêmicos como arrogância ou preguiça epistêmica. O primeiro faz com que não percebamos falhas e vieses em nossas práticas, conceitos e métodos de aquisição e transmissão de conhecimento, enquanto o segundo faz com que ignoremos uma série de questões que podem não nos tocar diretamente, mas que são cruciais para uma compreensão mais profunda das dinâmicas e injustiças sociais que assolam a nossa sociedade (Medina, 2013). Como articula muito bem Miranda Fricker em seu livro “Injustiça Epistêmica” (2007/2023), qualquer comunidade epistêmica que almeje florescer deve cultivar ativamente a justiça epistêmica, certificando-se que diferentes vozes, pontos de vista e modos de saber e comunicar conhecimento são reconhecidos, ouvidos e legitimados, e que uma pluralidade de conceitos estejam coletivamente disponíveis como recursos hermenêuticos para dar sentido à experiência vivida de diferentes agentes em posições sociais diversas.

Uma vez que concordemos com a visão de florescimento epistêmico esboçada no parágrafo anterior, torna-se imperativo que voltemos nossos olhares para nossa própria comunidade epistêmica – a filosofia acadêmica profissional – e façamos as seguintes perguntas: esta é uma comunidade diversa e plural, que reconhece e legitima diferentes pontos de vista, conceitualizações e modos de saber? Estamos fazendo o possível para que nossa comunidade floresça e gere bens epistêmicos que possam beneficiar a todas, todos e todes?

Em relação à primeira questão, há evidências irrefutáveis que isso não seja o caso. Dados empíricos revelam um número baixíssimo de docentes negros relativo aos brancos (Santos et al., 2021), uma baixa participação de discentes negros em atividades e oportunidades acadêmicas como bolsas de monitoria, iniciação científica, programas de mobilidade, etc. (Barbosa e Silva, 2017), e uma baixa representatividade de temas relacionados a negritude em pesquisas de pós-graduação em filosofia. Ou seja, as evidências apontam para um inequívoco processo de epistemicídio, que Sueli Carneiro define da seguinte forma:

Para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, o epistemicídio implica um processo persistente de produção de indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo a de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e pelo rebaixamento de sua capacidade cognitiva; pela carência material e/ou pelo comprometimento da sua autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo (2023, p. 88-89)

Como o epistemicídio é uma forma de injustiça epistêmica – que afeta a população negra enquanto conhecedores e transmissores de conhecimento – no restante desse texto usarei o termo mais geral “injustiça epistêmica”, que abrange não só o epistemicídio mas como também outras formas de injustiça, como a injustiça testemunhal e hermenêutica, além da exploração e apropriação epistêmica (ver Fricker 2007/2023). Tais injustiças trazem graves consequências psicológicas e afetivas, como pode ser observado em estudos que mostram que a população universitária negra é desproporcionalmente afetada por problemas de saúde mental (Carvalho et al., 2021).

Mas se nossa comunidade perpetua a injustiça epistêmica desta forma, e se concordamos que a justiça epistêmica em relação aos mais diversos grupos sociais é uma virtude fundamental para o florescimento de nossa comunidade, é de suma importância que identifiquemos os mecanismos e estruturas através dos quais essas injustiças são perpetuadas, para que assim possamos pensar em intervenções eficazes que fomentem a justiça epistêmica.

Em um texto recente assinado pela diretoria da ANPOF, propõe-se justamente a identificação de um possível mecanismo desse tipo: a distribuição de bolsas de produtividade do CNPq (PQ Sênior e PQ 1). A ideia principal do texto é que as bolsas recompensam de forma desproporcional temáticas e metodologias focadas em exegeses do cânone branco europeu, para o prejuízo de epistemologias e sistemas filosóficos alternativos. Os recipientes destas bolsas, por sua vez, serão os membros do Comitê Assessor (CA) responsável por distribuir novas bolsas, que continuarão a privilegiar essas mesmas temáticas e metodologias que se constituíram em um critério de ‘excelência’ adotado em nossa comunidade para a distribuição de bens epistêmicos diversos (como o financiamento de PPG’s, vagas em concurso, etc.). 

Para fundamentar esta hipótese, o texto cita evidências de que até o ano de 2016 a maior parte dos projetos de bolsas de produtividade se concentraram na subárea da história da filosofia canônica europeia e foram distribuídos quase que exclusivamente entre os centros mais tradicionais das regiões sul e sudeste, justamente onde tal metodologia aparece com mais força (Leite e Rocha Neto, 2018). As evidências apontam também desigualdades na distribuição de bolsas de produtividade em questões de gênero, já que apenas 17% dos recipientes de tais bolsas são mulheres. Curiosamente, faltam dados sobre o recorte racial dessas bolsas, algo que, como sugere o texto, evidencia a falta de interesse da comunidade em confrontar seu próprio racismo institucional (um tipo de preguiça epistêmica). 

Em minha pesquisa de pós-doutorado proponho trazer ferramentas teóricas da teoria da construção de nicho (doravante TCN) para compreender mecanismos de racismo institucional e injustiça epistêmica na filosofia acadêmica profissional. Nesse sentido, minha contribuição a esse debate será de natureza principalmente teórica, ao propor um quadro teórico que possa evidenciar o racismo institucional presente em nossa comunidade como uma propriedade de nosso ambiente informacional. No entanto, esta análise poderá trazer consequências práticas interessantes, relativas ao modo como pensamos a distribuição de bens epistêmicos em nossa comunidade. 

Podemos articular esse debate em termos das seguintes questões: de que forma a estrutura e organização de nosso ambiente acadêmico informacional (incluindo formas de acesso, armazenamento e distribuição de bens epistêmicos diversos) contribui para a perpetuação da injustiça epistêmica racial, se constituindo como uma forma de racismo institucional? E o que podemos fazer para reverter os efeitos nocivos desse mecanismo em direção a uma maior justiça epistêmica?

Para esclarecer a relevância dessas ferramentas teóricas, será preciso dizer algumas palavras sobre a TCN. Esta teoria foi originalmente desenvolvida para capturar as diferentes formas em que organismos modificam seus ambientes por meio de suas atividades e como essas modificações alteram as pressões seletivas que agem sobre eles (Laland et al., 2000). Essas modificações dizem respeito não apenas a construção de estruturas ambientais como tocas, ninhos, teias, represas, etc., mas também a ferramentas, artefatos, instituições, sistemas sociais e políticos e até símbolos públicos como linguagem ou notação aritmética. Um subconjunto destas modificações ambientais é o nicho epistêmico, que diz respeito ao modo como o ambiente informacional é modificado de modo a tornar certas informações mais ou menos acessíveis, beneficiando (ou prejudicando) as práticas e os estados epistêmicos de um ou mais agentes. Exemplos de construção de nichos epistêmicos vão desde o modo como formigas depositam trilhas de feromônios entre o formigueiro e uma fonte de alimento como guia para outras formigas, até o modo como organizamos nosso ambiente de trabalho (seja uma mesa de estudos ou uma cozinha) para que certos utensílios estejam mais facilmente visíveis e disponíveis. Um exemplo paradigmático de nicho epistêmico é sem dúvida a própria universidade, com seus departamentos, aulas, grupos de estudo, bibliotecas, periódicos, conferências e práticas de distribuição de bens epistêmicos (como as bolsas de produtividade, entre outros).

Tipicamente, a TCN tende a focar nos aspectos positivos da construção de nicho, enfatizando a expansão de nossas capacidades cognitivas através de técnicas de armazenamento e transmissão de informação. Ninguém duvida, por exemplo, que a criação das universidades representou um enorme ganho epistêmico ao facilitar a aquisição, armazenamento e disseminação de conhecimento. No entanto, tem havido um interesse crescente em identificar os diversos modos em que modificações ambientais podem ser prejudiciais para certos agentes ou grupos sociais. Esse movimento pode ser visto em trabalhos recentes que aplicam essas ferramentas teóricas a ambientes corporativos (Slaby, 2016), cassinos (Timms & Spurrett, no prelo), sistemas de saúde (Coninx, no prelo) ou ambientes de aprendizagem para neurodivergentes (de Carvalho & Krueger, no prelo), ressaltando seus efeitos deletérios sobre certos agentes que fazem uso desses ambientes.

Nessa perspectiva, o uso dessas ferramentas teóricas pode ser útil para mostrar como a perpetuação da injustiça epistêmica racial se dá por uma questão estrutural, que diz respeito ao modo como nosso nicho epistêmico (a filosofia acadêmica profissional) veio a ser organizado por fatores contingentes históricos e sociais. Nesse sentido, o texto da ANPOF supracitado faz um importante trabalho ao evidenciar como a distribuição de bens epistêmicos - através de bolsas de produtividade - se torna um mecanismo de racismo institucional por estar inserida em um nicho epistêmico que é ele mesmo racialmente estruturado. Apesar do texto ter focado em uma prática específica, espera-se que resultados similares sejam encontrados em outras práticas de distribuição de bens epistêmicos tais como bolsas de iniciação científica, bolsas de mobilidade, monitoria, programas PET, etc. Para que esses mecanismos sejam conhecidos será preciso investir em pesquisas qualitativas capazes de revelar o perfil racial e de gênero de nosso nicho epistêmico, para que possamos saber como reorganizar este nicho de forma a promover a justiça epistêmica.

Ora, mas se a injustiça epistêmica está na organização do ambiente informacional, não podemos pensar em virtudes como justiça epistêmica como se fossem apenas propriedades de agentes epistêmicos individuais (como frequentemente aparece na epistemologia das virtudes), mas sim como características de comunidades epistêmicas inteiras. E se a nossa cognição, nossa afetividade e nosso capital epistêmico, como enfatiza a TCN, está no ambiente compartilhado e não dentro da cabeça dos indivíduos, então o cultivo da justiça epistêmica deve necessariamente passar pela reorganização de nossos nichos, através de práticas de transmissão e distribuição de bens epistêmico que sejam capazes de valorizar as mais diversas perspectivas e modos de saber filosóficos para além do cânone branco europeu. Caso contrário, nossas práticas permanecerão como mecanismos de racismo (e sexismo) institucional. Diversos textos neste fórum trazem perspectivas importantes sobre como tornar mais justa a distribuição de bens epistêmicos em nossa comunidade, que podem ser incorporados a esse quadro teórico como formas de reorganização de nosso nicho epistêmico.

Tal visão tem consequências práticas e teóricas interessantes que podem enriquecer nosso debate. Em primeiro lugar, a reorganização do nicho epistêmico fará com que outras vozes, saberes, metodologias, questões de investigação, experiências vividas, etc., apareçam e se estabeleçam, redesenhando o espaço conceitual e experiencial da prática filosófica e introduzindo novas epistemologias e fenomenologias que eram até então ignoradas pela preguiça e arrogância epistêmica de nossa comunidade. 

Em segundo lugar, a TCN, ao enfatizar o papel constitutivo do ambiente na cognição, afetividade e conhecimento, nos mostra que a epistemologia e a filosofia da mente já são na verdade disciplinas profundamente políticas. Afinal de contas, o ‘ambiente’ que aparece nessas teorias não é um ambiente neutro, mas sim um espaço heterogêneo moldado por fricções, resistências, descontinuidades, injustiças e embates de forças políticas e sociais (Mills, 1998). Parte do nosso esforço, portanto, deve ser justamente identificar essas forças e seus efeitos em nossas atividades cognitivas, experiências afetivas e práticas epistêmicas, nos situando como agentes sociais em um espaço epistêmico racializado e fraturado. Mas ao mesmo tempo em que o diagnóstico deste espaço parece ser negativo, no cerne da TCN está a lição de que não somos meros espectadores passivelmente moldados por influências externas, mas atores que codeterminam sua própria trajetória, com amplas capacidades de modificar nossos nichos para que nossas comunidades epistêmicas floresçam e beneficiem a todas, todos e todes. 

 

Referências:

. BARBOSA E SILVA, L. Racismo Institucional e as Oportunidades Acadêmicas nas IFES. Revista Brasileira de Ensino Superior, v.3 n.3, 2017.

. CARNEIRO, S. Dispositivo de Racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

. CARVALHO, R.F., et al. Raça e Saúde Mental no Ensino Superior: Uma revisão sistemática. Research, Society and Development, v. 10 n. 9, e47710918369, 2021.

. de CARVALHO, F.N. & KRUEGER, J. Biases in Niche Construction. Philosophical Psychology (no prelo).

. CONINX, S. The Dark Side of Niche Construction: Challenges in Modern Medicine & Health Care. Philosophical Studies (no prelo).

. FRICKER, M. Injustiça Epistêmica. Tradução Breno Santos. São Paulo: Edusp, 2023 (2007).

. LALAND, K.; ODLING-SMEE, J., & FELDMAN, M. Niche construction, biological evolution, and cultural change. Behavioral and Brain Sciences, 23(1), 131-146, 2000.

. LEITE, A. C. F., & ROCHA NETO, I. Perfil dos bolsistas de produtividade em CNPq em Filosofia - ano 2016. Saberes: Revista interdisciplinar de Filosofia e Educação, v. 18, n. 1, 2018. ?

. MEDINA, J. The Epistemology of Resistance: gender and racial oppression, epistemic injustice, and resistant imaginations. Oxford: Oxford University Press, 2013.

. MILLS, Charles. Alternative Epistemologies. In: MILLS, Charles. Blackness Visible: Essays on Philosophy and Race. Ithaca: ?Cornell University Press, p. 21-40, 1998.

. MOREIRA, F.S. Estudos Filosóficos Sobre o Negro no Brasil: Um levantamento de teses e dissertações em temáticas negras nos programas de pós-graduação da área de filosofia (1987-2018).  Problemata v.10, n.2: 313-345, 2019.

. SANTOS, A.S, et al. Racismo Institucional e Contratação de Docentes nas Universidades Federais Brasileiras. Educação e Sociedade v. 42, e253647, 2021.

. SLABY, J. Mind Invasion: Situated Affectivity and the Corporate Life Hack. Frontiers in Psychology, 7, p. 1–13, 2016.

. TIMMS, R., & SPURRETT, D. Hostile Scaffolding. Philosophical Papers (no prelo).