Contra o atual sistema de bolsas PQ
Alessandro Pinzzani
12/07/2023 • Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq
Entre 2019 e 2022 tive a honra de participar, como membro do CA-FI do CNPq, de três avaliações de projetos submetidos à Chamada para Bolsa de Produtividade em Pesquisa ou Bolsa PQ. Essa oportunidade me permitiu constatar de perto algo que eu já sabia, mas de forma vaga, isto é, que a comunidade filosófica brasileira é plural, vivaz e capaz de produzir um conhecimento que, quantitativa e qualitativamente, deveria nos deixar muito orgulhosas e orgulhosos. Ao mesmo tempo, contudo, esta experiência reforçou algumas dúvidas sobre o próprio formato da bolsa PQ, que trago comigo há anos. Tais dúvidas dizem respeito nem tanto ao seu caráter produtivista, já evidenciado por sua denominação. Não tenho nada contra a produtividade, desde que seja medida em termos de qualidade e não somente de quantidade. Nesse sentido, o CA tem se esforçado para formular critérios de avaliação que visem justamente a conjugar as duas dimensões, privilegiando a primeira, pois a qualidade da produção científica deve sempre ser favorecida. Afinal de contas, as pesquisas das e dos bolsistas são pagas com dinheiro público e é mais que legítimo que se esperem resultados de qualidade, mas também numa quantidade que justifique os valores recebidos pelas e pelos bolsistas (lembro que esses valores vão de R$ 39.600,00 para uma bolsa PQ2 de três anos a R$ 168.000,00 para uma bolsa PQ1A de cinco anos, passando pelas outras bolsas PQ1 de quatro anos, cujo valor médio é mais ou menos de R$ 110.000,00). A bolsa não é um mero reconhecimento formal de excelência, ainda que haja quem a considere assim, mas representa o compromisso assumido pelas e pelos bolsistas perante a sociedade de produzirem resultados relevantes quer do ponto de vista qualitativo, quer do ponto de vista quantitativo. Minha dúvida diz respeito à eficácia do sistema atual em atingir esta finalidade.
Em primeiro lugar, não consigo ver em que medida a distinção entre vários níveis de bolsa possa servir a garantir que a produção seja da qualidade e da quantidade esperadas. Tal distinção acaba, antes, criando uma atmosfera de competição pouco saudável por recursos escassos, como o são as próprias bolsas, e pelo prestígio que vem com elas. Competição pouco saudável, pois induz a privilegiar a mera quantidade das publicações ou das orientações em detrimento da qualidade de textos longa e cuidadosamente ponderados e de trabalhos finais nos quais seja deveras visível a mão das orientadoras e dos orientadores. Além disso, suscita comparações pouco generosas e, de fato, impossíveis entre pesquisadoras(es) que atuam em áreas diversas e se ocupam de temas diferentes; afinal, considerada a inviabilidade de tal comparação, as pessoas que se sentem injustiçadas pelo sistema acabam recorrendo ao critério puramente quantitativo do número de artigos e orientações. Recebemos, como CA, vários pedidos de reconsideração baseados nesse critério numérico (“Como é possível que não me concederam a bolsa, se publiquei x artigos nos últimos cinco anos!?”) e recebi, em conversas pessoais, muitas reclamações nesse sentido (“Ah, mas eu publiquei mais artigos do que Fulano, que, porém, levou a bolsa!” ou “Não entendo por que Sicrana ganhou bolsa 1 e eu, que publiquei mais artigos Qualis A do que ela, fiquei com bolsa 2”). Isso, quando não havia acusações contra um ou outro membro do CA por supostos vieses pessoais. Repito, este tipo de competição não me parece saudável, nem estimulante para a elevação do nível da pesquisa filosófica em nosso país. Sem contar que, em cada chamada, o número de pesquisadores e pesquisadoras que entram no sistema ou sobem de nível depende do número de bolsas disponíveis no ano de referência – e isso varia bastante, fazendo com que permaneça um fator de acaso nas decisões do CA, por mais ponderadas que sejam. O próprio CA se limita a fazer uma classificação de mérito das propostas e tem somente uma ideia geral do número de bolsas, uma vez que, por um lado, sabe quantas bolsas terminarão sua vigência em fevereiro do ano seguinte, mas, por outro, não sabe exatamente quantas bolsas serão de fato concedidas pelo CNPq (se haverá aumento do número de bolsas ou não), o que dificulta a possibilidade de transformar bolsas 2 em bolsas 1 ou vice-versa (isso é permitido, desde que o valor total das bolsas não ultrapasse o montante total de recursos, do qual, contudo, o próprio CA toma conhecimento somente quando o resultado preliminar da chamada é divulgado pelos órgãos centrais do CNPq).
Por essas razões, penso que seria interessante refletir sobre a organização atual das bolsas PQ e buscar soluções alternativas. Pessoalmente, sou favorável à substituição das bolsas em seu formato atual por uma bolsa em nível único na forma de uma taxa de bancada, isto é, um auxílio dirigido unicamente a fomentar a pesquisa com a aquisição de material (livros, computadores, etc.), a compra de passagem (para participar de eventos ou realizar missões científicas) e o pagamento de diárias (também para eventos ou missões), nos moldes da taxa de bancada atualmente ligada às bolsas de nível 1. Isso representaria, de fato, uma forma de incentivar a pesquisa, pois obrigaria as e os bolsistas a utilizarem o auxílio exclusivamente para fins científicos, e permitiria um consistente incremento do número de bolsistas até nos casos em que os recursos financeiros disponibilizados pelo CNPq permanecessem estáveis em relação aos anos anteriores. Ao invés de termos pesquisadoras(es) que recebem 3.060 reais por mês, como no caso dos bolsistas 1A, e pesquisadoras(es) que recebem 1.100 reais, como no caso dos bolsistas 2, haveria uma bolsa única, digamos de 1.500 ou 1.700 reais.
Lembro que em outras comunidades acadêmicas mundo afora a excelência e a experiência das pesquisadoras e dos pesquisadores são reconhecidas pelos pares sem necessidade de recorrer a formas de classificação como a estabelecida pelo sistema de bolsas em vários níveis. Não é necessário que sejam enquadradas(os) como bolsistas 1A ou 1B para que sejam consideradas(os) intelectuais de referência ou pesquisadoras(es) experientes. A academia não é o exército, no qual devem existir hierarquias formais claramente definidas. Pelo contrário, nela deve funcionar certo grau de uma saudável anarquia que permita a existência de uma comunidade acadêmica plural, que pesquisa com seriedade os temas mais variados nas áreas mais diversas. Nesse sentido, o risco de enrijecer a pesquisa acadêmica, privilegiando temas e métodos específicos, me parece ser mais um aspecto negativo do presente sistema de bolsas.
Sei que a reforma por mim sugerida não pode ser levada a efeito autonomamente pela nossa área, devendo emanar do próprio CNPq. Contudo, penso que valha a pena, pelo menos, iniciar a discussão sobre o assunto.