filosofia, assim com minúscula

Marcus vinicius de souza nunes

26/07/2023 • Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq

 Assumindo aqui alguns riscos, inclusive o de jogar fora o bebê com a água do banho, sinto-me provocado a também opinar no debate sobre as bolsas PQ.

Sem dúvida que o debate é importante, porque apresenta um tema que toca diretamente a todos aqueles que produzem filosofia (seja lá o que isso for, talvez até um oxímoro) nos centros de excelência do país. Mas, para mim, parece que uma vez mais discutimos os azulejos da casa antes de juntarmos dinheiro para construir as fundações.     

Encanta-me que um tema que diz respeito a uma centena ou duas dos filosofantes do Brasil cause tamanho impacto e repercussão na instituição que, não ponho dúvida contra isso, melhor representa a “comunidade” filosófica no Brasil. “Comunidade”, assim mesmo, entre aspas, porque questiono se a busca de um interesse medianamente comum é suficiente para formar uma verdadeira comunidade.

As bolsas PQ, que são importantes, dizem respeito a uma parcela pequeníssima daqueles que produzem ou querem produzir filosofia no país, em especial, àqueles que já se encontram (querendo nós ou não) na carreira mais estável e segura em filosofia que dispomos: a docência em nível de Pós-Graduação nas grandes instituições de Ensino Superior. Sem dúvida que é justo que cada um reclame sua parte do quinhão, mas às vezes a “comunidade” filosófica é só um termo para esconder a boa e velha luta de classes, que repete seus padrões aqui.

Encanta-me ver os nomes e sobrenomes classe média dos filosofantes pelo país reclamando contra o quesito da produtividade ao mesmo tempo que buscam seu lugar ao sol teorético nacional e quiçá internacional. Encanta-me na mesma proporção que outras coisas me incomodam profundamente.

Uma delas é que enquanto abrimos um debate sobre bolsas PQ, vários programas de pós-graduação em filosofia criam uma série de dificuldades para um pobre mestrando ou doutorando conseguir uma simples bolsa CAPES-DS. Quando a própria Capes reconhece em portaria a necessidade de garantir ao pós-graduando outra fonte de renda que lhe garanta o sustento (!), e mesmo já havendo portaria anterior que garantia complementação de renda em função análoga à de sua pesquisa, as pós-graduações em filosofia do país se orgulham com suas exigências de dedicação exclusiva que garantem a “excelência” de seus cursos. Adianto-me: excelência burguesa para um pós-graduando metropolitano e pequeno-burguês. Quem não cabe nesse modelo ou não segue carreira ou faz sacrifícios que só sua própria pobreza e solidão conhecem.

Como outros colegas mencionaram, a produção em filosofia no Brasil é majoritariamente branca e masculina, embora haja ventos de saudável mudança. Contudo, não esqueçamos: é também burguesa! Basta olhar os quadros de disciplinas oferecidas nos cursos de pós-graduação, com horários (obrigatórios!) distribuídos ao longo da semana, de manhã cedinho (quando o cérebro ainda ferve) ou no meio da tarde (quando a cognição decai). Mas nunca um quadro pensado para um trabalhador, talvez um professor da rede básica que quer acessar os altos cumes bem pensantes, ou um trabalhador de outra área que queira especializar-se no pensamento filosófico. Mas sejamos otimistas, o importante é que a qualidade do curso é preservada e, se a nota 7 da Capes ainda não chegou um dia há de chegar e viveremos em Pindorama onde seremos todos uspianos.

A presença da filosofia na Academia, na Educação Básica e mesmo em outros setores de atividade produtiva (porque sim, se você não é herdeiro precisa trabalhar para sobreviver) é fundamental nessa discussão. Enquanto nos digladiamos por vagas, bolsas, estabilidade nos departamentos de filosofia, internacionalmente sabemos que o movimento é outro. Falo dos autores que estudo, só para citar alguns exemplos: Judith Butler é professora no Departamento de Retórica em Berkeley; Bruno Latour foi professor na Mines Paris Tech, lecionando para engenheiros; Paul Preciado é curador de arte. Mas, nossa filosofia tropical e nossos pensantes locais não repensam radicalmente o lugar muito mais amplo que os filósofos poderiam encontrar do lado de cá do Equador. O departamento de filosofia, a pós-graduação em filosofia, parece o lugar natural e o único filosoficamente “produtivo”. Filosofia pública? Filosofia em outros setores? Um desejo, talvez, mas que pode empanar a aura acadêmica dos bem pensantes.

Mas não somos preparados para isso, ao menos a maioria de nós. Enquanto outras áreas tendem para a formação inter e transdisciplinar (e, justiça seja feita, outras nem pensam no tema), nós continuamos a nos isolar em nossos textos, autores, tradições, escolas, métodos, questões. E ai daquele que desafiar esse modo! Aliás, quem consegue? Basta reler este mesmo fórum: importantes nomes da filosofia no país, sem dúvida respeitáveis, honestos e sérios, mas que mesmo num simples fórum aproveitam para fazer a única coisa que fomos ensinados a fazer: interpretar autores, de preferência europeus (ou norte-americanos), homens e brancos!

Isso me entristece duplamente: porque perdemos espaço como pensamento filosófico e porque perdemos a pura e simples possibilidade de uma sobrevivência adequada. Mesmo vagas tradicionalmente ocupáveis por filósofos (como disciplinas de fundamentos em vários cursos de graduação) muitas vezes não tem esses espaços ocupados pelo bem pensante filosofante porque não somos orientados para outros horizontes. Vivemos na mais plena alienação ilustrada.

Além disso, somos obrigados a conviver com a contradição desse sistema produtivo, que não diz respeito apenas as bolsas de uma agência de fomento. Ao mesmo tempo que lhe fazemos a crítica, que o queremos destituir, todos nós somos compelidos a buscar um lugar para habitar: habitação literal, mas também professional e teórica.

Não haverá mudança nenhuma nos critérios de eligibilidade das bolsas! Digo assim, profético e soturno. Não haverá, porque para isso seria necessário refazer o prédio todo. E, ainda que haja, o que isso afeta de fato na produção da filosofia no Brasil? Será que se tornará algo mais que um grupo de seletos esclarecidos debatendo sobre a melhor interpretação de algum texto obscuro que representa uma cosmovisão de mundo qualquer distante da nossa?

Eu coço as barbas com o velho Marx e espero que esse sistema todo entre em tal contradição consigo mesmo que imploda. Mas lá e cá, é preciso a consciência da alienação em que vivemos.

Espero um evento precipitador, como no Ìtán de Exu, divindade yorubá, Orixá que liga o mundo divino ao humano. É também o Orixá da Interpretação, o padroeiro de toda Exunêutica (em lugar da velha hermenêutica europeia). O Ìtán (passagem sagrada) diz:

“Dois agricultores não ofereceram os sacrifícios a Exu no começo de sua colheita. O Orixá, com raiva por ter sido esquecido, veste um gorro escandaloso, metade vermelho e metade amarelo, de modo que quem o visse de perfil conseguisse perceber apenas uma das cores. Exu passa entre os dois agricultores que colhiam em campos opostos. Um diz ao outro: - ‘Olha lá aquele sujeito com aquele gorro! Deve ser algum imbecil!’. Ao que o outro responde: - ‘E ainda por cima vermelho!’. – ‘Desculpe amigo, você está enganado, é amarelo!’. – ‘Você que está enganado! Tenho certeza que é vermelho!’. – ‘Amarelo!’. – ‘Vermelho!’. Os dois agricultores continuam nessa discussão até que Exu passa de novo, caminhando no sentido contrário. – ‘Ah amigo, peço desculpas, você estava certo: é amarelo’. O outro, enfurecido, responde: - ‘Você só pode estar debochando de mim! Agora eu vejo que é vermelho!’. A briga se tornou tão intensa que os dois agricultores se bateram até a morte. Tendo os dois morrido, Exu passa pelo campo e recolhe a oferenda que lhe tinha sido recusada”.

Qual será o gorro que fará esse sistema implodir? Até ele implodir, temo que continuemos a fazer uma filosofia assim, minúscula mesmo, a serviço daqueles que sempre se beneficiaram do sistema que os mantém. Convivemos com nossas contradições até ser possível um dia superá-las.