Sobre o necessário reconhecimento do doutorado direto em concursos públicos e processos seletivos para o magistério superior: uma defesa de critérios

Antônio David

11/05/2022 • Critérios em processos seletivos e concursos públicos para o magistério superior em Filosofia.

São muitas as questões envolvidas na definição de critérios em concursos públicos e processos seletivos, ao passo que não há uma resposta única e certa para boa parte delas. No fim, é inevitável e, portanto, legítimo que haja escolhas discricionárias, tanto na definição do edital, tanto na avaliação propriamente dita dos candidatos, o que não significa que tais escolhas não devam ser razoáveis e justificáveis. Em outras palavras, a discricionariedade não é uma liberdade absoluta, mas uma margem de liberdade. Daí que, mesmo obedecendo à regra republicana elementar de não favorecimento desse ou daquele candidato, concursos podem ainda assim compreender critérios discutíveis.

Quero aqui me ater a dois critérios em particular, os quais considero academicamente injustificáveis, e que giram em torno de uma mesma questão: trata-se do “esquecimento” do doutorado direto, seja na atribuição de pontos aos títulos acadêmicos, seja na titulação exigida.

Doutorado direto

Tem sido comum editais exigirem o título de mestre para a inscrição e, por conseguinte, para a investidura do cargo em caso de aprovação. Mas como exigir o mestrado em concursos quando o doutorado direto é uma instituição consolidada no sistema acadêmico brasileiro? Por não ter amparo legal, já há jurisprudência contra essa exigência.

No caso da pontuação – foco deste artigo –, o problema pode ser sumariamente descrito nos seguintes termos: ao se atribuir pontos ao mestrado e ao doutorado, aqueles candidatos que realizaram o doutorado direto acabam tendo pontuação menor do que candidatos que realizaram o mestrado e o doutorado. Tal implicação prática pressupõe que os segundos teriam superior qualificação e mérito acadêmicos em relação aos primeiros, uma vez que a avaliação de títulos não é outra coisa senão uma avaliação da qualificação acadêmica e do mérito acadêmico.

Não há dúvida de que a realização do mestrado e do doutorado é um mérito acadêmico; porém, como é de notório conhecimento no meio acadêmico, a realização do doutorado direto é um mérito acadêmico maior, na medida em que sua realização pressupõe que o aluno já cumpriu a etapa ou já superou o nível exigido pelo Mestrado, de modo que a realização deste tornou-se dispensável. Não fosse assim, desde que cumprisse os critérios e requisitos para ingressar no mestrado, bastaria a vontade do bacharel para a realização do doutorado direto, ou a vontade do mestrando para passar ao doutorado direto no exame de qualificação, sem o cumprimento de critérios e requisitos específicos, distintos daqueles. Mas não é assim. A realização do doutorado direto envolve critérios e requisitos rígidos, estipulados pelos próprios programas de pós-graduação, e cujo cumprimento é examinado e avalizado por avaliadores. Tais critérios denotam sempre uma maturidade de pesquisa e uma excelência acadêmica maiores. É o caso dos critérios e requisitos estipulados pela Portaria CAPES nº 077, de 15 de agosto de 2006, para a concessão de bolsas.

Esse entendimento, reconhecido no meio acadêmico, aparece explicitamente em um grande número de documentos oficiais, e só não aparece em todos justamente por ser um lugar comum. Dou apenas um exemplo: no Regimento do Programa interdisciplinar de pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), lê-se: “Em caso de excepcional qualidade ou grande originalidade e quando houver unanimidade entre os membros da Comissão Julgadora, o mestrando poderá ser indicado para prosseguir em estudos no Doutorado, no mesmo tema”. Os exemplos são abundantes.

Dessa ótica, ao reduzir o qualitativo ao quantitativo sob o pretexto de que doutores que fizeram o mestrado, por terem um título a mais, teriam uma qualificação a mais do que doutores que não fizeram o mestrado, acaba-se por deixar na sombra o principal: apesar de formalmente iguais enquanto títulos (“doutor”), o doutorado direto não se equivale academicamente ao doutorado convencional. Ambos equivalem-se, é verdade, na medida em que igualmente pressupõem que a etapa do mestrado foi cumprida e em que se pode licitamente presumir que o doutor, em um caso e no outro, já tem aquelas aptidões e habilidades que se exige do mestre, mas não pela mesma razão: o primeiro as adquiriu ou provou tê-las ao realizar e defender o mestrado; o segundo as adquiriu ou provou tê-las sem precisar realizar ou defender o mestrado. No primeiro, o mestrado foi necessário; no segundo, foi dispensável. Em uma palavra, quem realiza o doutorado direto dispõe de um título a menos não por demérito, mas, bem ao contrário, por mérito. Será lícito ignorar, esconder e ocultar essa diferença, quando ela dispõe de amplo e notório reconhecimento no meio acadêmico? Em poucas palavras, academicamente o doutorado direto equivale à soma do mestrado e do doutorado convencional.

Corrobora meu argumento a diferença que comumente se observa na carga horária e nas disciplinas exigidas no doutorado direto e no doutorado convencional, aquele equivalendo à soma deste com o mestrado. Deve-se levar em conta o fato de entre o mestrado e o doutorado haver níveis distintos de complexidade, e de a hora de trabalho no doutorado, em que se faz uma tese, não ser equivalente à hora de trabalho no mestrado, em que se faz uma dissertação. Trata-se, aqui novamente, de um lugar comum, que se verifica na Resolução CNE/CES nº 7, de 11 de dezembro de 2017 (Art. 1, §2) e em quase todos os regimentos de pós-graduação (gerais, das universidades, e específicos, dos programas), os quais, valendo-se das mais diversas formulações, costumam discriminar a dissertação e a tese em termos que sempre denotam um nível básico e um nível avançado de pesquisa, respectivamente. É o caso, por exemplo, do Regimento de Pós-graduação da UNICAMP (Art. 1, § 1 e 3). Esse mesmo entendimento figura por vezes nos próprios Estatutos das universidades. É o caso do Estatuto da Universidade Federal do ABC (UFABC), segundo o qual o mestrado pode ser encarado “como fase preliminar do doutorado ou como nível terminal”. (Essa mesma formulação aparece em vários outros Estatutos). Outro dado que respalda meu argumento é aquele que encontramos na política de bolsas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). No caso do doutorado direto, a bolsa compreende quatro etapas, sendo que nas duas primeiras o valor da bolsa equivale à bolsa de mestrado (Mestrado 1 e Mestrado 2), e, nas duas últimas, à bolsa de doutorado (Doutorado 1 e Doutorado 2): uma evidência de que doutorado direto equivale academicamente ao mestrado e ao doutorado convencional.

Nesses termos, deve-se conceder que o mestrado não é uma qualificação adicional – como é o pós-doutorado ou a especialização –, mas uma qualificação anterior e inferior ao doutorado, e não há justificativa plausível que fundamente a opinião de que aqueles que realizaram o doutorado direto não dispõem de semelhante qualificação. O adjetivo “direto” seria inteiramente supérfluo se não servisse exatamente para designar a presença dessa qualificação, como pressuposta, no doutorado direto. Já o argumento, previsível, de que aqueles que fizeram o doutorado direto não realizaram o trabalho realizado pelos doutores que, antes, fizeram o mestrado não se sustenta, afinal, a passagem diretamente para o doutorado não é gratuita, mas igualmente pressupõe um trabalho – sem o que ninguém alcança a qualificação exigida para o ingresso no doutorado direto –, o qual, presume-se, é equiparável ao mestrado. Não fosse assim, a própria existência do doutorado direto é que seria injustificável e que deveria então ser questionada. Em suma, o título de mestre nada mais é que um atestado de uma qualificação, de uma competência, não adicional, mas preliminar ao doutorado, que todo e qualquer doutor – inclusive aqueles que realizaram o doutorado direto – tem.

A perspectiva aqui defendida embasou a decisão judicial tomada no âmbito do Tribunal de Justiça do Pará, em 25 de abril de 2013: “Outrossim, destaco que, se foi guindado pela própria USP ao Doutorado Direto, não pode vir a ser prejudicado pela ausência do diploma de conclusão do curso de Mestrado, tendo em vista que cursou todas as disciplinas deste e somente não defendeu a tese (sic) por ter sido dispensado pela própria universidade em decorrência de seu alto desempenho no curso. Logo, concluo que o Apelado foi premiado com tal dispensa, como incentivo à produção intelectual e científica de interesse social, não cabendo, portanto, qualquer forma de prejuízo decorrente da ausência do referido diploma. Entendo que neste caso em particular, o diploma de conclusão do doutorado engloba também o de mestrado” (os destaques são meus).

Claro que se poderá argumentar que doutores que realizaram o mestrado o fizeram por opção, quando poderiam ter realizado o doutorado direto se quisessem, ou simplesmente porque, aptos a realizar o doutorado direto, o programa no qual realizaram a pós-graduação não o previa. Em outra direção, pode-se tentar argumentar que nem todos os doutores que realizaram o doutorado direto o fizeram por mérito acadêmico, e que uma parte o realizou apenas por influência de seu orientador, por exemplo, ou por algum outro critério extra-acadêmico, de modo que a mera realização do doutorado direto não é um indicador seguro de mérito acadêmico. O primeiro argumento sem dúvida envolve uma constatação correta, mas é insuficiente, pois não invalida o fato de o doutorado direto indicar um mérito acadêmico diferencial de quem o realiza. Já o segundo argumento não merece crédito. Se merecesse, tudo poderia ser motivo de suspeita e desconfiança. Portanto, não parece razoável que questionamentos como este tenham lugar em concursos.

Apenas o fato de a maior parte dos editais para concursos em universidades públicas atribuir pontuação maior a doutores com mestrado do que a doutores que realizaram o doutorado direto obviamente não justifica o emprego desse critério. O fato de uma prática ser habitual não significa que seja justificável. Só posso acreditar que isso ocorra porque aqueles que escrevem os editais e as instâncias que os aprovam costumam, por lapso, esquecer-se da existência do doutorado direto, e não por avaliar que doutores com mestrado possuem maior mérito acadêmico e maior qualificação do que doutores que realizaram o doutorado direto.

Por essas razões, para que não se caia no absurdo de punir o mérito acadêmico, penso ser correto que o critério de pontuação seja tal que a pontuação atribuída aos doutores que realizaram o doutorado direto não seja menor do que a pontuação atribuída aos doutores que realizaram o mestrado (considerando apenas e tão somente os quesitos mestrado e doutorado).

Finalmente, como várias vezes fiz menção ao mérito acadêmico, julgo necessário realizar uma advertência ao leitor, para não haver mal-entendidos sobre o sentido que atribuo à expressão. Não está em questão aqui a assim chamada “meritocracia”. Esta designa o uso político do mérito acadêmico para fins que não raro lhe são alheios. No entanto, o mérito acadêmico é um critério legítimo e adequado de avaliação do saber e da competência acadêmicas, seja a avaliação docente, seja a avaliação discente. E o fato de ser igualmente legítima a existência de políticas e critérios outros que não a mera aferição do mérito acadêmico – como a política de cotas, inclusive em concursos para o magistério superior – não implica em uma diminuição da importância e da dignidade do mérito acadêmico. A este, tais políticas e critérios não se opõem, mas o complementam.

Autonomia universitária

Não é preciso recorrer à imaginação para saber que o problema aqui discutido potencialmente esbarra na autonomia universitária. Se o princípio constitucional da autonomia universitária garante às universidades o direito de decidir discricionariamente quais critérios adotar, disso não se segue, contudo, que as instâncias universitárias e as comissões julgadoras têm o direito de adotar quaisquer critérios e de não justificar suas escolhas no mérito. Ao contrário, segue-se daí, em primeiro lugar, que, tendo o direito de decidir discricionariamente, as instâncias e bancas têm o dever e a responsabilidade de realizar escolhas razoáveis e, portanto, justificáveis; em segundo lugar, que é legítimo que as escolhas sejam questionadas, desde que de maneira fundamentada, e que se reclame por justificativas no mérito, primeiro internamente, e, no limite, quando há a recusa em se justificar as escolhas e quando as justificativas apresentadas são insuficientes ou pífias, judicialmente.

Se critérios inevitavelmente envolvem escolhas discricionárias, e se, em contrapartida, estas devem ser razoáveis e justificáveis, então é preciso haver um equilíbrio entre discricionariedade e razoabilidade. Uma boa maneira de se testar esse equilíbrio é verificar a capacidade de as justificativas apresentadas darem conta dos argumentos contra os critérios adotados, argumentos estes considerados razoáveis no meio acadêmico, e que se encontram difusos nos discursos e documentos, mas que podem ser reunidos, sistematizados e veiculados aberta e publicamente. Foi o que tentei fazer aqui.

É claro que haverá critérios cuja razoabilidade será passível de interpretação e para os quais as justificativas parecerão razoáveis para alguns e irrazoáveis para outros. Nesses casos, ainda que seja legítimo expressar uma posição, não há remédio senão resignar-se. Mas é igualmente claro que há ou deveria haver um limite à legitimidade e até mesmo à legalidade de certas interpretações. Penso que esse limite pode ser encontrado na prática comum, isto é, naquilo que foi convencionado, naquilo que é dito (inclusive em documentos oficiais) e, sobretudo, na política acadêmica: o fato de os órgãos que regulam a pós-graduação, as agências de fomento e as próprias universidades terem instituído o doutorado direto e terem estabelecido critérios e requisitos especiais para sua realização, e de dizerem, em uníssono, que este envolve uma qualidade, uma maturidade e uma excelência maiores do que o doutorado convencional não é suficiente para que se considere inaceitável a exigência de mestrado para o ingresso na carreira, ou para que se considere inaceitável a punição de doutores que realizaram o doutorado direto com pontuação menor do que doutores que realizaram o mestrado? Nesses casos, o limite está na coerência. Não tem cabimento que as universidades, no uso da autonomia de que gozam, digam uma coisa no dia a dia da atividade acadêmica e nas políticas que adotam e, nos editais de concursos, digam o contrário. É inaceitável.

Antônio David, doutor em Filosofia pela USP, é professor contratado III na Escola de Comunicação e Artes da USP. Todas as opiniões aqui expressas são pessoais e de minha inteira responsabilidade. Contato: antoniodavid@usp.br