Alguns dados para pensar currículo e excelência na área de filosofia: por uma filosofia pluriversal

Diretoria Anpof 2023/2024

16/11/2023 • Currículo e excelência na área de filosofia

Por: Diretoria Anpof 2023-2024

A inclusão de epistemologias do Sul-Global, de tradições brasileiras indígenas e afro-brasileiras, e de epistemologias produzidas por pessoas não brancas e mulheres é um desafio para a ampliação da filosofia que sem dúvida passa pelo questionamento do conceito de excelência universitária. Como podemos manter a compreensão de que alguns cursos de filosofia podem ser considerados excelentes quando não apresentam em seus currículos, nos casos mais graves, sequer uma menção a um saber ou tradição que tenha sido produzido por pessoas não brancas? Como podemos falar de excelência dos cursos de filosofia sem que tenhamos referenciais teóricos inscritos em tradições não eurocentradas? Será que a excelência se reduz à qualidade dos textos produzidos em torno de uma mesma tradição filosófica?

Essas questões são imperiosas para a filosofia contemporânea brasileira porque nos forçam a pensar a estrutura dos cursos de filosofia e os seus limites no que tange ao ensino de filosofia em todos os níveis de formação. Com a promulgação da lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de tradições africanas e indígenas no ensino básico – educação infantil, ensino fundamental e médio –, torna-se fundamental que os cursos de graduação, inclusive em filosofia, possam formar pessoas qualificadas para o ensino dessas tradições, tendo em vista uma formação plural e inclusiva. Por isso, esta lei somada à própria consolidação de pesquisas fora do eixo anglo-europeu na área, abrem a possibilidade de pensar os currículos na graduação e pós-graduação também a partir de uma formação não eurocentrada. Essa possibilidade, aliás, se articula com as próprias finalidades da educação superior dispostas na Lei de Diretrizes e Bases (Título 5, cap. IV, art. 43). O ensino de outras tradições filosóficas não apenas deveria ser um dever filosófico e um compromisso com a ampliação da filosofia como deveria rigorosamente falando ser um compromisso com a lei cuja aprovação remonta a uma longa história de luta dos movimentos sociais e impacta diretamente a formação e profissionalização das próximas gerações na área

As razões para que os currículos de filosofia sejam modificados não são apenas de cunho legal, mas refletem uma demanda crescente na pós-graduação e na graduação. Essa demanda certamente está associada às políticas afirmativas que puseram novos corpos nas salas de aulas da universidade. Além disso, essas demandas trazem consigo um questionamento quanto aos corpos docentes majoritariamente brancos, masculinos e que concentram os seus estudos apenas no Norte-Global sem qualquer constrangimento – daí a inépcia e a dificuldade de abrir novas áreas nos concursos. Uma vez que os projetos de pesquisa e de ensino, inclusive com ofertas de bolsas, atendem majoritariamente as tradições do Norte-Global, não há condições concretas para que estudantes possam optar por outros caminhos. Embora haja esforços significativos de colegas em abrigar pesquisas fora do cânone dominante e o crescente questionamento desta situação, avançamos pouco porque o centro do problema permanece. Como promover mudanças estruturais com currículos eivados de eurocentrismo? Não se trata apenas de um constrangimento de estudantes a repetirem o cânone, mas de uma explícita falta de oportunidade mesmo para avançarem, com financiamento público (bolsas de iniciação científica e outros programas), em novos horizontes.

Com efeito, uma vez que o currículo nas graduações de filosofia não acompanhou a crescente luta social por efetiva inclusão nas universidades (incluindo a produção diversificada e qualificada de conhecimento), se interditam novos caminhos para o prosseguimento de estudos e inserção de pesquisas, viciando a formação superior, ao se perpetuar certas tradições filosóficas em detrimento de outras.

Vamos apresentar agora alguns dados quanto aos currículos de filosofia no Brasil na esperança de convidar a nossa comunidade a um esforço de revisão estrutural de nossa base (sobre a pesquisa dos dados ver o anexo). Fizemos um mapeamento dos seguintes temas com vistas a ter um quadro de disciplinas que não sejam apenas a expressão do cânone europeu ou do Norte Global:

  • filosofia/pensamento africano e afrodiaspórico (em particular, afrobrasileiro);
  • filosofia/pensamento ameríndio;
  • filosofia e raça;
  • filosofia e gênero;
  • filosofia brasileira/no Brasil;
  • filosofia/pensamento de(s)/pós/colonial;

 

PÓS-GRADUAÇÃO

No caso da pós-graduação (só estamos levando em consideração a pós-graduação acadêmica), só encontramos uma disciplina do grupo em foco: “O colonialismo como teoria da modernidade: para a construção de uma teoria da modernidade desde e pelas periferias” (UNIR – Mestrado) – 1 disciplina de 1586 encontradas.

 

GRADUAÇÃO

No caso da graduação (só estamos considerando as graduações que têm pós-graduação acadêmica e em geral possuem o curso de licenciatura), nos parece evidente que, nas matrizes curriculares analisadas, a presença dos ensinamentos em foco neste artigo é ainda muito limitada (194 disciplinas de 6252 encontradas). Nos cursos de graduação analisados, tal presença parece se concentrar nas disciplinas optativas/complementares (140 optativas/complementares vs. 54 obrigatórias).

Poder-se-ia argumentar que ensinamentos voltados para temas relativos à filosofia/pensamento africano e afrodiaspórico (em particular, afrobrasiliero), filosofia/pensamento ameríndio, filosofia e raça, filosofia e gênero, filosofia brasileira/no Brasil, filosofia/pensamento de(s)/pós/colonial, podem entrar em disciplinas que possuem outro “rótulo”, tais como: “Ética”, “Estética” “Filosofia social e política”, “Metafísica”, “Teoria do conhecimento”, “História da filosofia”, “Filosofia da linguagem”, etc..

Contudo, apesar dessa abertura possibilitar que colegas consigam ministrar disciplinas com autores/as fora do cânone dominante, isso não deixa de reforçar o problema que é precisamente a falta de disciplinas com denominações explícitas – sublinhando que as divisões canônicas entre os âmbitos disciplinares também são oriundas da tradição hegemônica que mantêm o currículo eurocentrado. Não adianta a ação de um ou uma colega isoladamente sem a mudança da estrutura. Podemos dizer que isso vale também na Pós-graduação. Além disso, quando houver nas matrizes curriculares disciplinas com “rótulos” que explicitamente referem-se a estes ensinamentos, percebe-se uma desproporção muito grande com relação ao nível de especificação interna. Isto é, não é raro encontrar com certa facilidade “Tópicos especiais de estética IV” ou “Tópicos especiais de filosofia política V”, mas sequer encontramos disciplinas como “Filosofia africana II” ou uma “Filosofia e gênero II”.[1]

Essa lacuna quanto ao ensino de tradições filosóficas não eurocentradas ou não inscritas apenas no Norte Global não poderá ser desfeita sem que a comunidade filosófica brasileira passe a considerar tantas outras tradições historicamente negligenciadas nos cursos de filosofia. Será muito difícil que colegas espontaneamente e na sua maioria passem a ministrar disciplinas de epistemologias diferentes daquilo que constituiu a filosofia brasileira do ponto de vista institucional. Embora possamos reconhecer, com alegria, que várias pessoas têm feito um esforço de leitura e disseminação de epistemologias dissonantes do padrão europeu, é necessário que a contratação de novos docentes, com vagas específicas, possa iniciar uma alteração do quadro.

Neste ponto, outro problema se apresenta na forma de uma espécie de círculo. Os concursos para docentes são majoritariamente um reflexo direto dessa tradição hegemônica e retiram, assim, a possibilidade de epistemologias não brancas ou não eurocentradas entrarem definitivamente no cenário filosófico brasileiro. Se consideramos, por exemplo, os programas ou pontos dos concursos para cargo de professor/a de magistério superior em departamentos de filosofia de Universidades Federais divulgados no Boletim ANPOF[2], percebemos que poucos pontos de provas escritas e de provas didáticas contemplam explicitamente os ensinamentos de epistemologias não centradas no Norte Global. Chegamos ao número de 6 de 300, o que correspondentes a 2% dos pontos de concurso. Além disso, fica muito evidente que a grande maioria dos pontos de prova escrita/didática não são, tendencialmente, pontos formulados a partir das questões especificamente brasileiras, de raça, gênero, e a partir do pensamento de(s)colonial ou pós-colonial e das tradições de pensamento africana e afrodiaspórica (em particular, afrobrasiliera) ou ameríndia.[3]

Nessa perspectiva, para realmente ampliar a filosofia para além do horizonte hegemônico será necessário, por um lado, reformar os currículos para que possamos formar pessoas com conhecimento nas tradições não restritas ao Norte Global. Por outro lado, será igualmente necessário quebrar o círculo de repetição que os concursos perpetuam quando elegem os mesmos temas e autores como pontos para as provas didáticas e escritas. Trata-se, portanto, de ações que devem acontecer em concomitância. Entendemos que a mudança no currículo da filosofia e a contratação de docentes ligados às pesquisas dissonantes do saber europeu só poderá ocorrer quando assumirmos que não se trata de colocar cotas, por exemplo, para a entrada da filosofia africana e filosofia dos povos originários ou mesmo para as questões de gênero. É preciso dilatar o sentido da filosofia para que ela deixe de orbitar em torno do mesmo eixo como se nada que estivesse fora da tradição ocidental merecesse estar em condições paritárias e, por conseguinte, ser ensinado como uma epistemologia de relevo como as demais. Para que a democratização da filosofia deixe de ser uma abstração inalcançável ou a tarefa individual de algumas pessoas ou mesmo grupos é necessário que paremos de repetir os concursos sobre os mesmo temas e autores para induzir uma ampliação da reflexão filosófica por meio de contratação de profissionais habilitados a tratar de temas cuja urgência só não é maior do que a necessidade de dialogar com aquilo que nos constitui como povo.

 

Anexo

Antes de apresentar os resultados, é necessário fornecer algumas informações acerca da metodologia e do teor da pesquisa:

Os recursos utilizados na pesquisa foram o Relatório de Avaliação (CAPES) 2021 da área de filosofia; os Projetos Pedagógicos dos Cursos e sites de cursos pós-graduação stricto-sensu em filosofia ativos e cursos presenciais de graduação em filosofia de departamentos que possuem um programa de pós-graduação stricto-sensu em filosofia ativo.

·       A pesquisa foi feita de 12/06 a 19/06 de 2023.

·       Não se trata de modo algum de uma pesquisa exaustiva, mas de um levantamento aproximativo com o intuito de contribuir com a discussão sobre os currículos de filosofia no ensino superior e sobre o conceito de excelência.

·       É possível que tenhamos nos baseado, em alguns casos, em matrizes curriculares antigas, sucessivamente substituídas ou atualizadas.

·       Não foi fácil não apenas achar, mas também contar todas as disciplinas oferecidas pelos vários departamentos e programas. Não prometemos em geral uma grande precisão, mas dificilmente estamos errados em termos mais gerais.

·        Nosso foco foram as disciplinas teóricas. A ideia que nos guia foi se limitar a disciplinas e seminários. Esta imprecisão na condução da pesquisa pode impactar no cálculo das porcentagens – mesmo que de um modo que não altere os resultados de modo significativo.

·       Em vários casos, disciplinas optativas de graduação e disciplinas de pós-graduação em geral não nos pareceram especificadas – indicamos isso na tabela.
 

Acesse os levantamentos:

Levantamento 1 - cursos com PPGFil - ensinamentos target [GRADUAÇÃO]

Levantamento 2 - cursos com PPGFil - ensinamentos target [PÓS-GRADUAÇÃO]

Levantamento 3 - pontos de concurso relevantes _ pontos totais


[1] Os exemplos podem ser vários. No caso de tópicos especiais de filosofia do/no Brasil e na América Latina parece haver um aprofundamento maior.

[2] Foram consultados os Boletins ANPOF do número 208 até o número 285. Acreditamos que a série histórica deve corroborar o que estamos dizendo, isto é, se considerarmos os concursos feitos no Brasil desde a institucionalização da filosofia até hoje teremos uma demonstração ainda mais contumaz de como a filosofia brasileira não conisderou as próprias tradições filosóficas brasileiras e de povos do Sul Global e não brancos.

[3] Sobre aspecto, poderíamos ainda acrescentar o caso de vagas voltadas para o ensino de filosofia. Não é raro encontrar editais que interditam a inscrição de candidates/as/os com pós-graduação em educação implicando descompasso com a situação concreta. Grande parte de especialistas neste campo precisam migrar para a área da educação a fim de prosseguir com os estudos pois não há linhas de pesquisa estritamente sobre ensino de filosofia na área. De modo semelhante, os pontos a serem tratados para a vaga de ensino muitas vezes se confundem com a história da filosofia e não tratam de aspectos centrais do ensino, escola ou filosofia do ensino de filosofia.