O VASTO MUNDO DA FILOSOFIA NO BRASIL

Marcelo Carvalho

05/05/2020 • Debate sobre Coordenação de Área da Capes

07 Abr 2014

Os dados sobre a pós-graduação em filosofia no Brasil na última década, mais do que simplesmente surpreendentes por suas dimensões (que coloca a comunidade de pesquisa em filosofia no Brasil entre as maiores e mais ativas do mundo), explicitam uma mudança que não é unicamente quantitativa. Não se trata simplesmente de indentificar que há hoje mais pesquisa e mais produção na área, ou que novos centros de pesquisa e formação têm se espalhado mais e mais pelo país. O que observamos se estruturar e consolidar nestes anos é um novo contexto, mais amplo e plural, mais aberto e diverso, em meio ao qual se debate, pesquisa e ensina filosofia no Brasil. Esta pluralidade é, talvez, o que de mais rico e interessante o tempo em que vivemos apresenta como promessa: a consolidação de diferentes tradições locais, a ampla circulação de pessoas e ideias, a construção de um ambiente de debates marcado pela multiplicidade e pelo contínuo desafio que nos apresenta um ambiente aberto e sem fronteiras claras.

Os problemas que resultam desse novo cenário não são poucos e há urgência em colocá-los em pauta. É da perspectiva do debate sobre este contexto que a definição de posições sobre o perfil do trabalho na Coordenação de Área da Capes encontra fundamento em algo mais fundamental e mais relevante, desvinculado de nomes e de afinidades eletivas: aquele sobre a construção de perspectivas para a filosofia no Brasil e sobre os meios para o amadurecimento e consolidação da área neste novo ambiente de multipicidade e diversidade. Os temas em que este trabalho de construção se desdobra incluem a definição da identidade dos trabalhos de pesquisa em mestrado e doutorado, a revisão dos critérios de avaliação dos programas de pós-graduação de modo a torná-los adequados a este novo cenário e transparentes em seu processo de aplicação, bem como ajustados à compreensão construída em meio à comunidade do que é a excelência na área, pela revisão também dos critérios de avaliação de publicações em revistas e pela construção de critérios de avaliação de livros e da produção discente.

Ainda que não seja o caso de tratar aqui de cada um dos diversos temas que esta perspectiva geral coloca em nossa pauta, é importante deixar claro o papel estratégico que a Coordenação de Área da Capes pode adquirir a partir da ação da comunidade acadêmica da área, em particular dos programas de pós-graduação, bem como a responsabilidade da comunidade e das coordenações de programas de pós-graduação com este processo. 

O problema que se arma tem por base o fato de que, se por um lado a coordenação de área da Capes, nos limites que lhe são dados, detém os meios que lhe possibilitam interferir no perfil da área e influenciar em seus desdobramentos futuros, por outro lado o lugar vivo da pesquisa e do debate sobre filosofia é, e deve ser, a universidade, os departamentos, o cotidiano do trabalho de pesquisa e orientação, e somente a partir deste cotidiano é que se pode supor, esperar e desejar que se construam os valores para a pesquisa e as alternativas de trabalho que o processo de avaliação deve identificar, assimilar e apoiar. Não se constrói a boa política de ensino e pesquisa de pós-graduação por meio de artificialidades. Na base deste trabalho não se pode situar nada senão o amplo debate com todos os agentes deste novo contexto, a observação atenta e a criatividade em construir mecanismos e critérios que sejam reconhecidos por esta comunidade como ajustados a seus valores e a suas práticas. É a construção dos meios desta interlocução e relação com a comunidade e as coordenações de programas que se apresenta, da perspectiva aqui exposta, como o elemento principal a ser considerado neste debate sobre uma nova Coordenação de Área.

As tensões envolvidas nesse processo são explicitadas de modo particularmente evidente em um tema que se situa no núcleo do trabalho da Capes junto às pós-graduações: a avaliação. A existência de mecanismos públicos e impessoais de avaliação é, de uma perspectiva geral, uma característica inerente ao processo de construção de uma comunidade grande como a que se configura atualmente. É inevitável que se decida sobre distribuição de recursos, criação e avaliação de programas de pós-graduação, etc. A inexistência de critérios objetivos resultaria apenas em atribuir, indevidamente, um poder discricionário e não regulado a quem avalia estes processos e solicitações. Para usar um termo desgastado, a existência de critérios objetivos de avaliação é uma garantia republicana necessária em nosso contexto de pluralidade, equivalente aos processos públicos de seleção de docentes.

A simples exigência de critérios objetivos não é, entretanto, suficiente, e neste quesito temos muito a contruir na área de filosofia. Em primeiro lugar, porque objetividade não se confunde com avaliação quantitativa da produção de docentes ou discentes. E, ao lado disto, e não menos importante, porque os critérios adotados têm não apenas o papel de avaliar atividades passadas e justificar decisões presentes, mas são inevitavelmente indutores do perfil futuro de trabalho da comunidade. A experiência dos últimos quinze anos de avaliação pela Capes mostra isto talvez de forma inequívoca. Em um primeiro momento, os critérios adotados estimularam, por exemplo, a criação de “revistas de departamento”. Este perfil ainda se faz presente, ainda que não haja muito sentido em se falar de revista de departamento, na medida em que as publicações são fortemente desestimuladas a serem endógenas e a existência destas publicações não afeta de maneira direta a avaliação dos programas de pós-graduação. Mais relevante do que isto, parece também evidente o aumento significativo das publicações de artigos de filosofia, mesmo por mestrandos e doutorandos. Neste último caso, a identidade da produção filosófica brasileira parece ter sido efetivamente alterada, passando de um perfil mais ensaístico e eventual para uma produção mais técnica, regular e estritamente acadêmica, com pouca permeabilidade para o público leigo. A identidade dominante parece mais próxima daquela do cientista do que daquela do intelectual ou literato do meio do século XX.

Não se trata aqui de emitir juízos de valor sobre este processo (ainda que debatê-los seja algo necessário e urgente). O fundamental neste momento é perceber que o debate sobre avaliação é parte de um debate mais amplo e que não pode ser situado senão em meio ao conjunto de docentes e pesquisadores que constituem a pós-graduação em filosofia no Brasil: sobre sua identidade, seus métodos de investigação e debate, o perfil de sua produção e os rumos que ela deve seguir. O cenário a ser evitado é que se construam ferramentas de avaliação sem que se considere o cenário futuro que ela estimula e induz. Ou, a contrapartida disto, de tratar debates como este, sobre avaliação, como questões de natureza técnica.

A qualidade mais fundamental que instrumentos de avaliação podem ter é o de serem reconhecidos como adequados pelos envolvidos no processo. A maior virtude de um processo de avaliação talvez seja aquilo que situamos no contraponto da técnica: o debate plural, a observação atenta e a criatividade na criação de formas relevantes de registro e classificação de nossas atividades.

Por fim, algo que não é de importância menor é que os critérios de avaliação sejam explicitados e registrados de forma adequada e pública. Nossos processos atuais de avaliação, por exemplo, são muito melhores do que as regras que os regem. Isto explicita a seriedade de quem tem conduzido estes processos, bem como a dificuldade de construir documentos que regulem de forma mais direta o trabalho de avaliação. Mas é fundamental que o processo de construção da área dependa o mínimo possível de circunstâncias e pessoas, e que nosso trabalho se consolide em documentos e registros que possam gerar expectativas e sustentar trabalhos futuros.

O debate que se coloca agora para a comunidade de pós-graduação em filosofia do Brasil, em particular para as Coordenações de Programas de Pós-Graduação, nos impõe a responsabilidade de agentes comprometidos na definição do perfil de nosso trabalho. Nossas ações não têm mais peso do que se poderia atribuir a ações circunstanciais e a fatos cotidianos da gestão do sistema de pós-graduação no Brasil. Mas este cotidiano que vivemos hoje tem o peso de seu lugar, um momento de transformação, e de seu futuro, pelo qual é o único responsável. À coordenação de área a ser construída cabe levar adiante o trabalho de aproximação com a comunidade da área, atitude que marca a gestão que ora se encerra e que merece nosso reconhecimento, com os fóruns de debate que a ANPOF pode fomentar, com os novos agentes que compõem o cenário atual da pós-graduação em filosofia e com o futuro que esta área construirá a partir de seu trabalho cotidiano.

É fundamental que uma nova coordenação de área se construa a partir de compromissos com a comunidade da qual parte, com a qual precisará dialogar e para a qual se apresenta como meio de realização.