Opinião em Debate (Conexões, nº 2)

11/05/2023 • GT Filosofia e Psicanálise

A vida nunca mais será a mesma: cultura da violência e estupro no Brasil

Comentário de Claudia Murta [1] e Ethel Maciel [2]

A violência é um fenômeno complexo que envolve várias dimensões da sociedade. A análise desse fenômeno deve considerar as dimensões históricas, sociais, econômicas, culturais, morais, psicológicas e institucionais e as relações entre elas. Entende-se que a violência contra a mulher é um fenômeno vivenciado cotidianamente na vida das mulheres brasileiras, haja vista os índices históricos alarmantes.

A pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em conjunto com o Instituto Datafolha (2021) indica que 1 em cada 4 mulheres de 16 anos ou mais foi vítima de algum tipo de violência naquele ano no Brasil, sendo as mulheres jovens negras as maiores vítimas. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2021) indica que em 2020, 3913 mulheres foram assassinadas, entre homicídios e feminicídios. Além disso, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) divulgou que em 2020 houveram 105.671 denúncias de violência contra a mulher realizadas através do Ligue 180 e do Disque 100, sendo 72% das denúncias referentes à violência doméstica e familiar (AGÊNCIA BRASIL, 2021).

Nesse contexto, em 2021, a jornalista Adriana Negreiros publica, pela editora objetiva, um livro intitulado “A vida nunca mais será a mesma: cultura da violência e estupro no Brasil”, no qual, por meio de uma escrita cativante, apresenta a história de oito casos de vítimas de violência sexual no Brasil, incluindo o seu próprio caso, além de evidenciar as políticas, leis e normas técnicas desenvolvidas para o combate dessa nefasta violência.

Ao expor seu próprio caso de estupro ocorrido em seu carro decorrente de um sequestro relâmpago no estacionamento de um shopping, Adriana cita a “Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher” estabelecida em 9 de junho de 1994, em Belém do Pará, chamada “Convenção de Belém do Pará”; menciona a proposição, em 1976, no Tribunal Internacional de Crimes contra as  Mulheres, pela socióloga Diana Russell, do termo – feminicídio e, desde essa época, nas publicações estadunidenses sobre estupro pleiteavam-se que as mulheres violentadas dessa forma deviam passar do estágio de vítimas para sobreviventes; Adriana releva ainda que em 1985 foram instituídas as Delegacias da Mulher, com primeira unidade em São Paulo.

Intermeados aos corolários do relato de seu próprio caso, Adriana discorre sobre outros casos, todos com nomes fictícios para proteção das identidades, como a de Gisele, adolescente de quatorze anos, estuprada por um jovem vizinho da família, com decorrência de gravidez. Gisele continuou convivendo com o estuprador e foi culpabilizada pela vizinhança por ter sofrido estupro até o nascimento da criança; e, mesmo tendo a possibilidade de realização de aborto legal, Gisele quis dar continuidade à gestação para expiar sua culpa. Em seu texto, Adriana Negreiros esclarece que em 1998, com 59 anos de atraso, o Ministério da Saúde publica a norma técnica “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”, direito previsto pelo Código Penal de 1940.

Outro tema, no contexto apresentado por Adriana, foi o de estupro marital, termo que passou a ser utilizado no início dos anos 1990 figurando como rol das violações em direitos humanos estabelecidas pelas Nações Unidas, abordado em casos, como o de Naima que foi cotidianamente violentada e estuprada pelo marido e Paula que foi submetida a cirurgia reestruturante após estupro marital situado no contexto da violência doméstica e familiar.

A Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, foi criada em resultado às conquistas e ações persistentes em favor dos direitos das mulheres e da dignidade humana, constituindo mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra às Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de execução Penal; e dá outras providências.

Considerando o enfrentamento e prevenção à violência doméstica, o Título III da Lei no 11.340/06, dispõe sobre a Assistência à Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar. Consta em seu Capítulo I, das medidas integradas de prevenção, no artigo 8, que as ações da “política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não governamentais, tendo por diretrizes: nas áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação, a promoção de estudos e pesquisas; o respeito no meio de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar; a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras medidas.”

E no Título V, da mesma Lei, dispõe sobre a possibilidade de os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher poderem contar com uma equipe multidisciplinar composta por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde, as quais em suas atribuições, deverão “fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes”. No caso de maior complexidade o juiz poderá contar com profissional especializado, e prever recursos para criação e manutenção de equipe de atendimento multi e interdisciplinar. Também, no Título VII, Art. 45 que modifica o Art. 152 da Lei 7.210/84 possibilita a determinação do juiz ao agressor comparecer obrigatoriamente a programas de recuperação e reeducação (Lei 11.340/06).

Casos de pedofilia são apresentados no livro de Adriana Negreiros, como o famoso caso Araceli, ocorrido em 1973, no ES, e que, mesmo causando infindável pesar até hoje, o estuprador dá nome a uma das principais avenidas da cidade de Vitória, deixando claro que a vida da criança não importa e que o estuprador é homenageado pela cidade. O caso de Tatu é um exemplo de estupro de criança pelo próprio pai, marcado pela omissão da mãe; além do caso de Carol que foi abusada pelo avô quando criança e quando jovem sofreu um estupro corretivo por ser lésbica; além de Amanda que também sofreu estupro corretivo pelo marido da tia por ser lésbica e não recebeu apoio da família que, em muitos casos de estupro, não apoia a sobrevivente.

A violência contra a mulher trata-se de uma ruptura, uma violação de direitos, sendo também considerada um problema grave de saúde pública, o que reitera a importância da discussão em torno da violência contra a mulher se construir de forma interdisciplinar. Quando se localiza esse fenômeno na realidade brasileira, é necessário pensar na violência como violação de direitos, mas não só, sendo fundamental destrinchar o fenômeno enquanto parte constituinte de sistemas de opressão, dominação e exploração dos corpos e vidas de sujeitos.

O processo de inferiorização, dominação e exploração das mulheres é potencializado no sistema capitalista, sendo esse o modo de produção e organização da economia através da propriedade privada dos meios de produção e da acumulação global pela exploração da força de trabalho. No capitalismo, as relações com o patriarcado e o racismo se expressam, por exemplo, na divisão sexual do trabalho, sendo elas consubstanciais.

Como referência para o entendimento desse processo, um recurso ao texto “O Mal-Estar na Civilização” de Freud, de acordo com o qual, o amor é um dos fundamentos da civilização, pode ser de grande valia. Em suas palavras, “por um lado, o amor se coloca em oposição aos interesses da civilização; por outro, esta ameaça o amor com restrições substanciais” (p. 123). Nesse contexto de impasse entre o amor sexual e a civilização, Freud situa que a civilização se comporta diante da sexualidade, como o opressor se comporta diante do oprimido que a fim de se proteger de uma revolta, aplica a política do medo.

Uma política na qual o amor seja o afeto preponderante é antagônica à política do medo e, portanto, não é condizente com a lógica da opressão. Desde que haja amor, não há lugar para o medo e a opressão. Por que o amor não acontece como política das relações? A resposta freudiana é que a civilização é construída sobre a base da destruição do amor que, antagonicamente, é sua condição.

Em seu recente livro, “A força da não violência”, Judith Butler (2021) defende a luta pela não violência baseada em modos de resistência e movimentos a favor da transformação social que diferenciam a agressão de seus objetivos destrutivos a fim de afirmar uma política igualitária radical.  Sugere que uma nova forma de igualdade emerge das relações entre as pessoas como uma característica das relações sociais que declaram interdependência como condição da igualdade. Romper com formas de sujeição colonial faz parte do processo de emancipação e reivindicação de igualdade e liberdade. Pelas relações de interdependência, o destino de cada um de nós está nas mãos dos outros.

A maioria das formas de violência está comprometida com a desigualdade. Uma ética da não violência deve pressupor e afirmar o valor igual das vidas. E nesse ponto, Butler reforça um argumento já desenvolvido em outros momentos que, “uma vida tem de ser enlutável – isto é, sua perda tem de ser conceitualizável como uma perda – para que a interdição da violência e da destruição inclua essa vida entre os seres vivos a serem protegidos da violência” (p. 58). Nessa proposta, garantir que uma vida seja enlutável é, mais do que ter o direito a ser lamentada, é saber que a vida será salvaguardada porque tem valor. Continua afirmando que o direito de continuar existindo é social, uma obrigação social e global que temos uns com os outros e, para isso, não é necessário amarmos uns aos outros, cita Freud em sua proposta segundo a qual, há uma força humana que impele à destruição e à autodestruição, inclusive à destruição daquilo que mais amamos, portanto ela aponta que precisamos defender a não violência e conter a destruição como afirmação da vida.

Para a autora, toda forma de dominação sinaliza o desfecho mortal como possibilidade. O feminicídio opera com a instauração do medo de que toda mulher, inclusive trans, pode ser morta. As mulheres sentem-se aterrorizadas pela prevalência e pela impunidade dessa prática mortífera, são induzidas a se submeter para evitar esse destino e a sua subordinação está ligada à sua condição de matáveis. A intensidade da reprodução do ato está ligada, segundo a filósofa, ao menosprezo do crime, culpabilização da vítima e patologização do assassino para desculpá-lo. A violência está no próprio ato que, por si só representa a estrutura social e, também está, por conseguinte, no prenúncio contido na dominação social das mulheres e pessoas feminilizadas. Em suas palavras: “a violência acontece na sequência de recusas jurídicas e não reconhecimentos: não denunciar significa que não há crime, não há punição e não há reparação” (p. 146). As perdas não deveriam ter acontecido e não deveriam nunca mais acontecer.

Assim, a filósofa revaloriza a vulnerabilidade e o cuidado retratando as pessoas e as comunidades que são sistematicamente submetidas à violência fazendo-lhes justiça e respeitando a dignidade de sua luta. A vulnerabilidade atravessa e condiciona as relações sociais e ela faz sentido identificada à luz de um conjunto concreto de relações sociais, incluindo práticas de resistência. Vulnerabilidade e resistência podem funcionar juntas com solidariedade. No seu entender, “a não violência se torna o desejo pelo desejo do outro viver” (p. 155) demonstrando que qualquer perda é inaceitável, intolerável e que todos merecemos viver.

Como chegamos até aqui? Onde estavam os sinais que não vimos e não interpretamos? Junto com Judith Butler, perguntamo-nos: por que deixamos passar esses sinais e não nos posicionamos de forma coletiva como resistência baseada na ética da não violência?

Adriana Negreiros comenta a ultrajante declaração, dada em 2003, do então deputado Jair Bolsonaro, dirigida à deputada Maria do Rosário, propondo que ele jamais a estupraria por que ela não merecia e de como as declarações e posturas do deputado e posterior presidente contribuíram para o avanço da cultura do estupro no Brasil. Adriana não deixa de citar, no final de seu livro, o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, em abril de 2016, com citação e elogio, do então deputado, Jair Bolsonaro, ao coronel Ustra que torturou a então Presidenta no período da ditadura militar no Brasil.

Acrescentamos nesse debate que, em decorrência da manifestação histórica de mulheres, #EleNão, em repúdio ao candidato a presidente Jair Bolsonaro, em 30 de setembro de 2018, a eleição para Presidente da República de Jair Bolsonaro foi uma resposta da sociedade misógina à manifestação das mulheres e, tal como na nomeação da avenida Dante Michelini, em Vitória, parte da sociedade brasileira  durante a eleição de 2018, deixou clara a valorização da cultura do estupro.

 

REFERÊNCIAS:

AGÊNCIA BRASIL. Governo registra 105 mil denúncias de violência contra a mulher. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-03/governo-registra-105-mil-denuncias-de-violencia-contra-mulher>. Acesso em: 20 de março 2021.

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________. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Dispõe sobre a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 10 maio 2020.

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SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Graphium Editora, 2011.

 

[1] Professora Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo e membro de sustentação do GT de Filosofia e Psicanálise da Anpof. Atua na área de pesquisa em Filosofia Contemporânea, Filosofia e Psicanálise, Direitos Humanos, Saúde da Mulher e Combate à violência contra a mulher. E-mail: cmurta@terra.com.br

[2] Professora Titular do Curso de Enfermagem e do Programa do Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo. Atua na área de pesquisa de Epidemiologia de Doenças Infecciosas e Direitos Humanos. E-mail: ethel.maciel@ufes.br