Filosofia, Ação, Criação: Poética Pragmática em Movimento

Genildo Ferreira da Silva

Prof. do Depto de Filosofia e do PPGF da UFBA.

13/12/2023

Filosofia, Ação, Criação: Poética Pragmática em Movimento.
José Crisostomo de Souza (org.), Edufba, 2022, 472 páginas

Não conheço livro como este, uma coletânea ao modo de uma jam session, de uma concertação entre diferentes falas temáticas, a partir de uma fala geral de abertura. E isso como exploração produtiva, de um terreno filosófico e como desenvolvimento de um pensamento, coisa rara em nosso país. Com um belo nome, rico em associações inspiradoras, o Poética Pragmática é quem anima essa construção – verdadeiro convite à participação, num momento que a comunidade filosófica brasileira aparentemente busca novos caminhos.

Como nossa comunidade filosófica sabe muito bem, o Poética é um grupo aberto, de pesquisa e elaboração em filosofia, interessado em fazer filosofia democraticamente, justamente como um trabalho plural e em progresso. Também como uma retomada de contato com a tradição de pensamento crítico brasileiro, ensaísta, filosofante, completada pelo percurso disciplinar, acadêmico, das últimas décadas. É um pessoal, em todo o caso, que não quer fazer filosofia apenas como leitura interna de obra de autor histórico e recepção passiva e exclusiva da tradição metropolitana. Isso é o que explica a introdução da coletânea Filosofia, Ação, Criação: Poética Pragmática em Movimento, uma vistosa realização desse audacioso projeto.

Fazer filosofia, para o Poética, é tratar de fazer filosofia contemporânea e temática, em relação com nosso tempo e contexto. O que não exclui, antes o contrário, que se o faça em diálogo - crítico, apropriador, usuário - com a tradição “dominante”, ou quaisquer outras. E por um enfrentamento - argumentativo, conceitual - da filosofia que hoje se faz onde se faz filosofia, sobre temas e problemas. Incluindo, obviamente de forma atualizada, aqueles que concernem a assuntos como ação, poiesis, realidade, conhecimento, valores, política, cultura, gente. Sempre a propósito de nossos termos mais gerais de compreensão das coisas, que é do que a filosofia se ocupa.

Para que se tenha uma ideia de onde o Poética chegou, a presente coletânea traz 16 contribuições, de 11 instituições diferentes, de 6 países. Um resultado que se apresenta respaldado por prestigiosas apreciações (vide a quarta capa do livro) sobre sua perspectiva geral, da parte de ilustres colegas, como Paulo Margutti, Waldomiro Filho, Roberto Mangabeira Unger, Linda Alcoff e outros. Aproveitemos, então, para deixar que esses falem do que tem sido o produto desse movimento filosofante.

Na ordem dos nomes acima listados, o que se tem nessa coletânea representa “uma alternativa ao nosso modelo nacional, comentarista, de fazer filosofia”. Exibe “um ponto de vista filosófico prático e produtivo, sem pretensões fundacionistas, afinado com propostas e práticas democráticas”. Faz isso como uma elaboração do “intelecto que insiste em tratar das questões importantes da vida”, como uma produção do “espírito humano” que excede a “cultura universitária, com seus pedaços da enciclopédia”. Ao ponto de constituir “uma nova tendência filosófica, fascinante, em convergência crítica com Marx e com o pragmatismo, que captura a criatividade e a contingência da história, e aponta para uma via esperançosa e democrática, mas também realista e concreta”.

A perspectiva geral que enforma o movimento poético-pragmático já foi e segue sendo proposta, defendida e praticada em diversos textos anteriores, sobre filosofia brasileira e sobre fazer filosofia no Brasil, de vários integrantes dessa turma. Como, na Coluna Anpof, por Laiz F. Dantas, Tiago Medeiros, Rodrigo Ornelas, Hilton Leal, Carlos Sávio, Crisóstomo, André Itaparica, Pedro Lino. Junto com esses, outros nomes, de mais parceiros, estão nessa Coletânea, como Cristina di Gregori, Paniel Reyes, Goyo Pappas, Andy Blunden, Ralph Bannell, Daniel Vargas, Laila Galvão, Frederick dos Santos, Erick Lima. Além disso, em réplicas e tréplicas publicadas em diferentes veículos, a referida perspectiva tem sido debatida e criticada por destacados representantes da nossa comunidade de humanas, como os já mencionados Waldomiro e Margutti, e ainda Marcelo Carvalho, Leonardo Pereira, Marcelo Silva, Eduardo Rangel e Roberto Dutra, por exemplo, em Cognitio, em Ideação, de novo na Coluna Anpof, etc.

Qual o percurso do Poética? Nessa coletânea, aprendemos que o mencionado movimento se iniciou por uma ideia de “filosofia como coisa civil”, cidadã, mundana, nacional, sem posição transcendental, o que nos lembra o Prof. Oswaldo Porchat Pereira. Começou pela ideia, norteadora, de uma elaboração filosófica contígua às discussões da esfera pública e às conversas do mundo da vida, conforme sugestão exposta, nos fins dos anos 1990, num ensaio de Crisóstomo, depois publicado em A Filosofia entre Nós (Ed. Unijuí, 2006), junto com textos de espírito semelhante, de Ernst Tugendhat, Oswaldo Porchat e Renato Janine.

A ideia foi, mais adiante, associada à de uma virada prática, material, da filosofia; entre outras coisas, não-linguocêntrica e amigável com relação à ciência e à democracia. Trata-se de uma virada que, nessa coletânea, se desdobra em mais noções, como construcionismo institucional, modernismo como apropriação, de criação e autocriação, também de uma teoria crítica mais política e de massa. São coisas que, antes desse livro, foram elaboradas em dissertações e teses, algumas já publicadas, e em inúmeros artigos e comentários, de diversos membros do Poética, como já referido.

Sobre essa virada filosófica prático-poiética, para ação e criação, veja-se, entre outras coisas, o ensaio experimental “O mundo bem nosso”, de Crisóstomo, que não está na coletânea, mas a enforma, junto com outras importantes referências, de mais membros do grupo. Nesse ensaio, uma virada crítica não pós-moderna começa por noções como intencionalidade sensível e emaranhamento prático-criativo com o mundo, e se estende a outras como objetivação e apropriação, como forma material de vida, etc. Isso com vistas ao que quer ser, e, como vimos, tem sido assim entendido também por outros, uma alternativa filosófica inovadora, nesses tempos de imposição metropolitana de uma dominância de linguagem e discurso na filosofia, que, como parece também a tantos outros, pode trazer consequências práticas questionáveis, também no nível político e cultural.

Os textos de Filosofia, ação, criação: poética pragmática em movimento não trazem uma apresentação direta, desenvolvida, do núcleo conceitual desse ponto de vista. Mas exibem eles seus desdobramentos temáticos, também algumas de suas faces e interfaces, em relações de aproximação, comparação e distinção, com e contra outras posições de pensamento, ao modo de uma interlocução. Pois é próprio da elaboração do Poética não se apresentar como coisa pronta, de uma pessoa ou grupo só, tal qual Minerva saída da cabeça de Zeus. Muito menos coisa sem parentescos, sem diálogos e empenhos de reconstrução, tampouco coisa que se constitua sem crítica e sem polêmica, sem dialética. Como uma posição interacionista, relacional, histórica, como um certo holismo social-material, para além dos dualismos, mentalismos e representacionismos da tradição moderna e clássica, ela pode até mesmo ser posta em diálogo produtivo com outras tradições, não ocidentais, sem para isso precisar deixar de ser filosofia, na especificidade do termo.

É com esse espírito que a lista de assuntos contemplados na coletânea exibe, nessa ordem:  teoria crítica, marxismo, humanismo; quanto de crítica e de teoria queremos; mente e mundo no enativismo; experiência e atividade sensível em Dewey e no Poética; o pragmatismo nietzschiano; criação sensível e autocriação pessoal; modernismo, antropofagia e apropriação; interpretações e projetos de Brasil; Mangabeira e o engrandecimento das pessoas comuns; construcionismo institucional; pluralismo cultural em educação; tecnologia e transformação da natureza humana; formas de vida e artefatualidade; hegelianismo e pragmatismo.

Todas essas tematizações são postas em relação com elementos comuns à “plataforma filosófica” do Poética, e também em relação umas com as outras, pela “Introdução” da Coletânea, que oferece ainda uma narrativa do percurso desse trabalho todo, do qual essa resenha expõe apenas alguns elementos. Sua riqueza e seu interesse não se limitam ao que pode ser aqui resumido, que é apenas um convite para você participar, ao seu próprio modo e criticamente, desse pretendido Movimento. A Coletânea Filosofia, ação, criação: poética pragmática em movimento pode ser baixada gratuitamente no repositório da Edufba e pode ser adquirida no site da editora, neste link. Vamos a ela!