Comissão de Ensino de Filosofia da Anpof emite nota técnica sobre a consulta de Avaliação e Reestruturação da Política de Ensino Médio

02/06/2023 • Notas e Comunicados

A consulta pública inicialmente prevista até o dia 6 de junho de 2023 pela Portaria nº 399, de 8 de março de 2023, estabelecida pelo MEC, se pretende como abertura de diálogo com profissionais e especialistas da educação, estudantes e sociedade civil sobre aspectos do Novo Ensino Médio (NEM). Como indicado anteriormente em entrevista concedida à Anpof, a Comissão de Trabalho sobre o Ensino de Filosofia compreende que o seu propósito é apenas de revisão de alguns pontos do NEM, sem atacar sua própria estrutura. Ainda, tampouco se sabe sobre o peso que os dados coletados terão nos próximos encaminhamentos do atual governo (até o dia 01/06/2023, foram 5.784 mil respostas ao questionário proposto). Sua composição por perguntas fechadas e pouco espaço para comentários retiram do horizonte a possibilidade de revogação e encaminhamento de outras proposições, como o recente Projeto de lei 2601/2023 protocolado pelo deputado Bacelar (PV-BA).

Entendemos que a resposta à consulta levantada é importante, mas insuficiente para um debate amplo sobre o futuro da política voltada para o EM no país. O NEM já demonstra sinais de fracasso: seja pela escassez de recursos materiais para sua implementação, seja pela perda das disciplinas (especialmente, filosofia) nos currículos, seja pela multiplicação de novos componentes nos percursos formativos, que se mostram caóticos, seja pelo crescimento da desespecialização docente por assumir conteúdo alheios à sua cadeira de formação, seja a implementação acelerada sem considerar a própria formação de professores, seja o aprofundamento das desigualdades entre diferentes sistemas de ensino e também da carga horária docente. Por isso, a Comissão de Trabalho sobre o Ensino de Filosofia é favorável à revogação do NEM, acompanhado de um período de transição para reformulação da estrutura do ensino médio que efetivamente acolha estudantes, professores, pesquisadoras, pesquisadores e movimentos da sociedade civil em caráter transparente e republicano.

A consulta está disponibilizada na plataforma Participa + Brasil, do governo federal (https://www.gov.br/participamaisbrasil/reestruturacao-da-politica-nacional-de-ensino-medio) e consta de 11 perguntas fechadas, com uma caixa de texto opcional para comentários, limitado a 500 caracteres. Seguimos os encaminhamentos de entidades como o Conselho Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e Campanha pelo Direito à Educação, que indicaram a participação à consulta, com utilização do recurso de comentários para uma crítica qualificada. As respostas aqui apresentadas respeitam a limitação dos comentários e permitem orientar críticas possíveis às questões. Esperamos que este documento contribua para maior participação das e dos docentes de filosofia neste e em outros movimentos pela revogação do NEM.

I - Atualmente, a Lei determina um tempo de 5h por dia (ou 1000 horas por ano) como carga horária mínima do Ensino Médio. Progressivamente, deve-se alcançar o total de 4.200 horas, no mínimo. A expansão das matrículas em tempo integral é uma premissa importante, todavia, é importante que sejam definidas:

• Formas de atendimento dos estudantes do ensino médio noturno e da Educação de Jovens e Adultos que não produzam a exclusão escolar e que favoreçam sua permanência na escola. 

• Orientações curriculares capazes de associar a expansão da jornada a uma concepção de educação integral comprometida com o desenvolvimento global dos estudantes.

Por que discordamos da proposição?

Ampliar a carga horária demanda reduzir as assimetrias estruturais entre as escolas públicas, o que só vai acontecer com o suporte adicional de recursos. Isso demanda, além dos recursos previstos para o novo FUNDEB, a revisão da Emenda Constitucional nº 95. No caso da EJA, além das adequações pedagógicas, talvez seja razoável estabelecer uma política, de curto e médio prazo, que induza os jovens, com idade entre 15 e 25 anos, a se dedicarem apenas aos estudos, como acontece em outros países.

II – A Formação Geral Básica, que é ofertada a todos os estudantes foi limitada a 1.800 horas do total da carga horária do ensino médio. Para as outras 1200 horas, o que se propõe é um conjunto flexível de disciplinas, compondo itinerários formativos por área de conhecimento, na perspectiva de acolher interesses, necessidades e escolhas dos jovens. Na análise da implementação vivida até aqui, há evidências de que esse arranjo possa estar gerando um comprometimento da Formação Geral Básica dos jovens, assim, seria importante:

• Estender o tempo destinado à formação geral básica dos estudantes, alcançando a proporção de, no mínimo, 70% do tempo destinado ao Ensino Médio de tempo parcial (2.100 horas). 

• Permitir arranjos específicos para a oferta de itinerários ligados à formação técnica e profissional que exijam, para certificação, uma carga horária superior a 900 horas.

Por que discordamos da proposição?

O aumento da carga horária não significou a ampliação do tempo dedicado ao ensino de conteúdos científicos e filosóficos. Componentes das áreas de Ciências da Natureza e de Ciências Humanas tiveram diminuição de até 40%. No caso da Filosofia, houve a redução em 15 estados. A formação geral comum precisa “ensinar tudo a todos” e a parte diversificada deve ocupar um espaço apropriado. A formação técnica e profissional deve respeitar as orientações contidas no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos.

III – Embora a tradição legislativa brasileira, no campo da Educação, seja delegar aos Estados e Municípios, a composição dos componentes curriculares que será ofertada na Educação Básica, certas disciplinas do currículo apareciam, no cenário anterior à Reforma, como obrigatórias na perspectiva de garantir que os estudantes tivessem acesso a determinadas ciências que nem sempre marcavam presença no Ensino Médio. A Lei 13.415/2017 definiu a obrigatoriedade de disciplinas como Língua Portuguesa, Matemática e Língua Inglesa, por exemplo, ao mesmo tempo em que modificou a expressão “disciplinas de sociologia e filosofia” para “estudos e práticas de sociologia e filosofia”. É preciso equalizar essa situação, de modo a:

• Definir, à luz da BNCC, que a área curricular de ciências humanas e sociais aplicadas deverá ser composta, no mínimo, pelos componentes curriculares de Sociologia, Filosofia, História e Geografia, com oferta obrigatória no Ensino Médio.
• Definir, à luz da BNCC, que a área curricular de ciências da natureza e suas tecnologias, deverá ser composta, no mínimo, pelos componentes curriculares de Biologia, Química e Física.
• Definir, à luz da BNCC, que a área curricular de Linguagens e suas tecnologias deverá ser composta, no mínimo, pelos componentes curriculares de Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Artes e Educação Física.

Por que discordamos da proposição?

Os “estudos e práticas” foram uma inclusão precária diante da reação pública à perda da obrigatoriedade destas disciplinas junto com artes e educação física. Apesar de ser fundamental a inclusão de sociologia e filosofia no currículo, não se ataca a estrutura excludente do NEM ao manter apenas Línguas Portuguesa e Inglesa, Matemática como componentes obrigatórios. Compreendemos que uma formação de qualidade passa por uma educação integral, com pleno acesso ao conhecimento socialmente produzido.

IV – A flexibilização curricular do ensino médio é uma proposta importante, presente no debate de gestão pública há algumas décadas. Há casos de boas práticas em nível internacional e nacional, todavia, os processos de flexibilização curricular requerem cuidado sobretudo em contextos em que há forte desigualdade, caso em que esta pode produzir mais desigualdades e prejudicar os estudantes que estão mais vulneráveis. A implementação, ainda que incompleta, do Novo Ensino Médio, aponta esse risco. Assim, seria importante:

• Estabelecer parâmetros mais detalhados para a proposição e inclusão das disciplinas eletivas no currículo do ensino médio 

• Construir, de maneira colaborativa, em parceria com as redes estaduais, repositórios para o compartilhamento e aprendizagem cruzada em torno da flexibilização curricular

Por que discordamos da proposição?

A flexibilização se realiza por meio dos itinerários formativos, responsáveis pelo aumento de componentes, incompatível com a estrutura escolar, precarizando o trabalho docente e atrelado à pedagogia das competências, exigida na BNCC. Ela não oferece a parte diversificada do currículo, preconizada pela LDB antes da reforma: coerente com a formação integral, considerando as diferenças regionais e culturais. Antes, os itinerários instrumentalizam a diversidade e promovem o esvaziamento do currículo.

V - No Brasil, a oferta da educação básica regular acontece, tradicionalmente, de forma presencial, mesmo quando se mobilizam algumas tecnologias de informação e comunicação. Durante o período de restrições impostas pela Pandemia de Covid-19, o Brasil experimentou a oferta de situações de aprendizagem não-presencial e parte dessas experiências foi mantida no retorno às aulas presenciais. O texto da Lei nº 13.415, de 2017, abre a possibilidade de reconhecer aprendizagens realizadas em EaD para integralização curricular. Se, para os itinerários formativos essa composição pode trazer, em certas experiências, possibilidades interessantes, no caso da Formação Geral Básica há sério risco de comprometimento das aprendizagens, sobretudo para os estudantes que não dispõem, fora da escola, de condições objetivas para situações de mediação à distância e estudo autônomo fora da escola. Assim, é importante:

• Definir que a Formação Geral Básica - FGB deve ser feita exclusivamente na modalidade presencial.

Por que discordamos da proposição?

 Ao considerar que a educação é um direito de todas/os estudantes, não apenas a FGB, mas também a parte diversificada (atualmente representada pelos itinerários formativos) deve ser realizada de forma inteiramente presencial. A EaD precisa dispor de oportunidades reais de acesso a equipamentos e tecnologias para sua realização, o que não procede no atual contexto brasileiro, dado a falta de investimento em educação e desigualdades de diversas ordens enfrentadas por estudantes.

VI - A oferta da educação técnica e profissional dentro do ensino médio traz importantes desafios. Um, é formação pedagógica dos docentes, visto que os professores das áreas técnico-profissionais têm situações muito variadas quanto à formação em licenciatura, embora tenham conhecimento aprofundado de sua área profissional. Permitir que esses profissionais possam atuar como professores da educação técnica e profissional, com um processo de reconhecimento do notório saber é uma possibilidade trazida pela reforma do ensino médio. Todavia, para evitar que essa solução seja utilizada de formas incoerentes com esse princípio, seria importante:

• Estabelecer parâmetros mais detalhados para a possibilidade de utilização do reconhecimento de notório saber como critério de alocação de profissional para docência no ensino médio, restringindo o dispositivo aos componentes curriculares afeitos à formação técnica e profissional.

Por que discordamos da proposição?

O magistério na educação básica (e, portanto, no ensino médio) supõe, além do domínio técnico de sua área, saberes específicos da atividade docente promovidos pela formação em licenciatura. O recurso ao notório saber, mesmo para cursos técnicos e profissionais, aprofunda a dicotomia entre conhecimento e ensino; pesquisa e docência. Além disso, contribui para uma visão instrumentalizada do processo de ensino-aprendizagem, como mera aplicação de um arcabouço teórico na sala de aula.

VII - Estudantes do campo, quilombolas, indígenas, jovens ribeirinhos, jovens com deficiência e outros públicos não hegemônicos enfrentam o desafio de acessar e permanecer no ensino médio em condições de desigualdade estrutural. O modelo proposto pela reforma do Ensino Médio delegou aos estados a definição das formas pelas quais esses públicos seriam incluídos nas transformações propostas. Esse processo aconteceu de forma heterogênea e desigual, introduzindo camadas adicionais de estratificação da oferta e do atendimento educacional. Desse modo, é importante:

• Estabelecer orientações operacionais específicas para a oferta do ensino médio para juventudes do campo, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, com deficiência e outros públicos não-hegemônicos, de forma a assegurar equidade educacional nesta etapa da educação básica.

Por que discordamos da proposição?

O combate à evasão não se resolve com o NEM,, pois a reforma contribui para aprofundar as desigualdades estruturais. Dado que o número de estudantes pode determinar o número de itinerários formativos, muitas comunidades escolares só oferecem um, limitando as escolhas futuras das/os estudantes e desconsiderando a pluralidade regional. Se nas capitais do país a autonomia de escolha discente é uma falsa promessa, este aspecto é mais agudo entre aquelas/es distantes dos grandes centros.

VIII – Parte das transformações propostas no Novo Ensino Médio dependem da melhoria substancial das condições de infraestrutura física e pedagógica das escolas. Tal processo tem sido liderado pelas redes estaduais de ensino, com diferentes graus de velocidade e capacidade de execução. Nesse contexto, o esforço que precisamos fazer para tornar as escolas de ensino médio em ambientes potentes de aprendizagem deve considerar:

• A definição de parâmetros mínimos de qualidade da infraestrutura física e pedagógica das escolas 

• A construção de uma política de investimentos articulada, unindo o governo federal e os governos estaduais, para melhorar os prédios escolares existentes e disponibilizar recursos pedagógicos e de tecnologia.

Por que discordamos da proposição?

 As condições de infraestrutura física e pedagógica são insuficientes sem a valorização da atividade docente, mais precarizada em razão da desespecialização e pulverização de sua carga horária gerados pelo NEM. O Fundeb, como garantia de política de investimento para a infraestrutura escolar, também não pode estar sujeito às contingências de governos quanto ao limite de gastos, como prevê a atual proposta do regime fiscal aprovada recentemente pela Câmara dos deputados.

IX - Um ponto crucial é a formação inicial e continuada de professores e gestores educacionais. Desde a formação inicial, nos cursos de licenciatura, até a formação permanente ou continuada, realizada pelos sistemas de ensino, os princípios, a concepção pedagógica, as práticas de ensino inclusivas, interdisciplinares e contextualizadas e os processos de avaliação formativa são elementos fundamentais do processo de desenvolvimento profissional dos docentes. Assim, seria importante:

• Reorganizar as regras que definem como devem ser os cursos de licenciatura para a formação de professores e gestores, nas faculdades de educação.
• Orientar a formação dos professores nos cursos de licenciatura numa lógica interdisciplinar de modo convergente à organização do ensino médio por área de conhecimento.
• Construir, a partir da articulação entre o Ministério da Educação, as Secretarias de Estado da Educação e as Instituições de Ensino Superior, um programa de formação continuada especial para professores e gestores que atuam no ensino médio.

Por que discordamos da proposição?

A formação de professores deve garantir formação ampla e consistente nas disciplinas de referência, sem a qual não há interdisciplinaridade nem atuação pedagógica de qualidade. A BNCC não oferece parâmetro de qualidade para a formação específica e a organização por áreas não pode descaracterizar as disciplinas. É preciso retomar a Resolução CNE 2/2015 e revogar a BNC-Formação, para construir uma formação docente socialmente referenciada, crítica e emancipatória, em diálogo com as universidades.

X - As transformações no Ensino Médio exigiram também uma reestruturação do Exame Nacional do Ensino Médio - Enem. Essa é uma dimensão complexa da política porque impacta diretamente a equidade e a justiça no acesso ao ensino superior. Considerando que se trata de uma avaliação nacional, é importante que os conteúdos, habilidades e competências avaliadas tenham uma referência comum. Nesse sentido, é importante que:

• A Matriz de Avaliação do Enem seja organizada a partir do que está estabelecido na Base Nacional Comum Curricular para a Formação Geral Básica e habilidades essenciais para o sucesso na educação superior.*

* Obs.: esta questão do questionário da consulta foi editada para contemplar ajustes técnicos em sua redação.

Por que discordamos da proposição?

A Reforma do Ensino Médio atropelou a construção das discussões sobre a BNCC. Sua versão final, sem respaldo público, se constitui pela pedagogia das competências, orientada por um processo de ensino tecnicista, calcado no saber-fazer, empobrecendo uma formação integrada. Entendemos que o debate sobre a versão anterior da BNCC precisa ser retomado, visando a formação integral dos estudantes, contextualizada a suas realidades para, então, se pensar em critérios para avaliações de acesso ao ensino superior.

 XI – Processos de avaliação institucional participativa da qualidade da oferta educativa são instrumentos bastante consistentes de melhoria contínua dos sistemas de ensino. No Brasil, uma tradição importante nessa agenda são os Indicadores de Qualidade da Educação Infantil e os Indicadores de Qualidade do Ensino Fundamental. Esses instrumentos, nascidos da conjunção de esforços do governo com a sociedade civil avançaram no último quadriênio com a proposição dos Indicadores de Qualidade do Ensino Médio, parceria liderada pelo Unicef com a organização não-governamental Ação Educativa, o Ministério da Educação e o Inep. Na perspectiva de apoiar o processo de melhoria contínua da oferta do ensino médio, seria interessante:

• Disponibilizar a metodologia e “Indicadores de Qualidade da Educação – Ensino Médio” para uso dos sistemas de ensino e das escolas. 

• Oferecer formação para a utilização da metodologia, no Ambiente Virtual de Aprendizagem do Ministério da Educação.

Por que discordamos da proposição?

A avaliação institucional não pode se resumir aos Indicadores de Qualidade do Ensino Médio. É preciso constituir um sistema nacional de avaliação da educação básica que considere e aprimore as condições de trabalho dos professores, a presença de profissionais da educação nas escolas e a atividade fim das escolas, que é promover a formação integral dos estudantes e não apenas alcançar boas notas no IDEB.