Continuando o diálogo - os desvios políticos do pensamento
Luís Fernando Crespo
Prof. Dr. (USF)
24/05/2023 • Coluna ANPOF
Começo o texto falando da estranheza que é escrever a quem não se conhece. Não conheço quem lê esta coluna (ou, pelo menos, não conheço a maioria); neste sentido, também não conheço a professora Gisele Secco, autora de um artigo a mim endereçado e a quem me dirijo com todo respeito, com a intenção de continuar o diálogo estabelecido. “Dirijo-me” de certo modo, pois, por não a conhecer, considero apenas a autora do texto enquanto fenômeno, aquilo que aparece. Por um lado, é bom não conhecer os leitores, pois exige de mim um cuidado maior e uma atenção com o quanto meu texto pode alcançar um público que não seja exclusivamente do âmbito filosófico; por outro lado, seria rico conhecer o leitor para poder se dirigir a ele de maneira mais própria e sem tanta generalidade (que sempre corre o risco de cair na pura superficialidade). Escrever para que todos entendam exige que não se vá em todas as fundamentações da argumentação; é um exercício de sair da academia e da escrita formal do trabalho científico. É risco; mas há espaço para todo texto, não significando que se possa descuidar do exercício da (pretensa) verdade. Para um texto com indicação de fundamentação desde as vírgulas, eu partiria para um artigo de periódico científico.
Heidegger (1889-1976), ao se debruçar sobre o fragmento 50, de Heráclito, questiona: “Mas o que poderá a razão se, junto com a des-razão e a anti-razão, ela se mantém no patamar de uma mesma negligência?” [1]. No caso, o pensador vai falar da negligência sobre a adveniência da essência da razão. Aqui, quero tomar o cuidado para não negligenciar o objeto, perdendo-me no caminho instrumental da razão. Toda opção de caminho de pensamento é uma opção política; e, como todo descaminho é um caminho, todo desviar é, também, opção política. Neste sentido, não vou, exatamente, escrever uma resposta aos questionamentos feitos, pois acho que eu e a referida professora vamos por caminhos diferentes – e isso pode ser rico, quando não nos descuidamos da própria filosofia. O exercício da razão não deveria me levar ao velamento da própria razão – mas é sempre um risco.
Neste exercício de pensar, bem sei que, quanto mais eu objetivar a verticalidade nos temas levantados no texto a mim dirigido (como se eu quisesse escrever uma resposta), mais eu me afasto de minha primeira proposta de reflexão, que é a de pensar a organização do conhecimento, no modo como ele se dá na escola, como consequência de determinações políticas. Bem sei do hiato que existe da universidade para a educação básica – principalmente, ao considerar a escola pública. Tendo atuado muitos anos na rede estadual de São Paulo, como temporário e efetivo, conheço muitas dificuldades (por ter passado por elas), mas sei de muitas que não cheguei a conhecer, das quais tenho ciência por meio de colegas.
A filosofia em âmbito universitário alcança níveis de desenvolvimento argumentativo importantíssimos para nossa sociedade: além dos renomados centros de estudos, ela transforma a realidade por meio daqueles que levam o filosofar para outros âmbitos, dentro das necessidades culturais, sociais, tecnológicas e de inovação – embora eu arrisque dizer que, em proporção aos formados em filosofia, não é a maioria que alcança tais posições. Na universidade, a filosofia tem condições de chegar ao cimo das montanhas, se pudermos considerar uma ideia de Nietzsche (mas, será que filosofamos efetivamente?). Não menos importante é essa mesma filosofia alcançar a sala de aula da educação básica, vivendo a secura do pó de giz (na escola pública, principalmente, pelo número de estudantes) – sem isso, ela restará em torres de marfim ou d’ivoire, pela preferência que não faz diferença, já que não hierarquiza. E vale dizer que tal secura, metaforicamente, estende-se para diversas situações na escola – que também é pública, mas não pode ser em francês.
Eu não posso desviar a atenção de uma situação que é crítica para o ensino de filosofia no Brasil, refugiando-me na verificação de conceitos, pois não é o que propus (por exemplo, para entender qual é o tipo de raciocínio da matemática, poderia, simplesmente, recomendar a literatura de filosofia da matemática). A matemática é um conhecimento de grande importância – mas, considerando-se que nem todas as pessoas se dedicarão a ela, mais importante é o raciocínio lógico que ela traz. Por que é que, então, o ensino de habilidades lógico-racionais não poderia estar sob a responsabilidade tanto da matemática como da filosofia? Mas esta última, muitas vezes, é recebida como entrave para aquela: quem não vive a realidade brasileira não consegue ter a noção do que seja o cotidiano da filosofia na escola, nem talvez tenha ciência, por exemplo, de um artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo, no dia 16/04/2018, intitulado “Filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática” [2] – especificamente para estudantes de baixa renda, afirma o artigo que se apresenta com base em pesquisa.
A matemática é opressora ou oprimida pela filosofia e pela sociologia? A matemática é conhecimento, e seria um engano raso pensar que ela oprime; mas o uso que se faz dela, submetida a uma lógica racional-tecnocrata, apenas reforça um sentimento de fracasso e consequente culpa, por parte de muitos estudantes. A matemática não é opressora; os professores de matemática não são opressores; mas o uso da matemática pode ser opressor.
Há uma determinação política e social do espaço que os componentes curriculares ocupam na educação básica. E o uso apenas instrumental da razão filosófica (pode-se aprofundar em referências para entendimento do que falo) pode me levar a negligenciar elementos importantes. Descuidar do aspecto político, facilmente leva a questões ideológicas que podem aparecer disfarçadas para o público leigo, com argumentos válidos, logicamente falando, mas carregados de posicionamentos míopes e proposições que carregam qualquer valor imaginável, menos o de verdade. Por exemplo, se eu pretender uma discussão mais própria ao campo teórico das definições e possíveis relações lógicas, e, na necessidade de instanciar, utilizar-me de conteúdo do âmbito da política factual de forma não clara (ou bem clara), faço uso do instrumental lógico com a influência política do modo mais raso possível. E me pergunto se é possível algum uso não ideológico da teoria.
O diálogo que existe da filosofia com matemáticos e computeiros (apenas replico a forma jocosa de nomeação) ainda é um diálogo acadêmico, que não chega à sala de aula da escola pública (a não ser em raríssimos casos, já assumindo que toda generalização é insuficiente para falar da realidade). Diálogos teóricos com quem se dedica – e conhece – a área de exatas, tenho no círculo mais íntimo de minhas relações, até dentro de casa.
Se eu não tomar o devido cuidado, acabo negligenciando o que vivemos na política educacional nos últimos anos (principalmente nos últimos 4) e não enxergo que, com o NEM – Novo Ensino Médio, um componente curricular como a filosofia acaba diluída; e vale explicar que, diferentemente de se pensar a diluição de uma essência que se multiplica em qualidade ao ser diluída, no caso da filosofia, há uma diluição que pode ser entendida quase como um apagamento. Eu cito sempre a filosofia, mas é fácil enxergar que isto se estende para todas as humanidades, mas não apenas a elas (é preciso conhecer uma matriz curricular e perceber como ela foi alterada ao longo dos anos). É preocupação da própria ANPOF pensar temáticas relacionadas ao ensino de filosofia na educação básica, algo que pode ser inferido em suas publicações [3], em fórum de debates [4], minicursos [5], na criação de comissão [6] e mesmo em publicações de GT [7].
Como professor, entendo que a oposição classificatória feita por estudantes em “componentes mais difíceis” ou “componentes menos difíceis” não é boa nem real do modo como é posta, a não ser que se considerasse propensões individuais. Mas por que filosofia, sociologia ou artes quase nunca aparecem como “difíceis”? Talvez, porque pouco aparecem na matriz curricular. Falamos de um uso político, sem nem chegar a problematizar a produção política do conhecimento. Pensar a carga horária dos componentes curriculares não é algo do microcosmo da escola, mas das mais altas instâncias de decisão que dão o direcionamento social.
Enfim, na academia, corremos o risco de nos desviarmos da vida: aquele acontecer que a racionalidade científica não alcança, como já indicado por Bergson, Husserl, Freud, Heidegger e Merleau-Ponty, entre outros. Na educação básica, temos todos os indivíduos – oportunidade que não pode ser menosprezada, como se pudéssemos esperar para quando chegar o momento da universidade. Nem todos os estudantes que estão na escola ingressarão no mundo universitário; alguns irão, simplesmente, viver.
[1] HEIDEGGER, Martin. Logos (Heráclito, fragmento 50). In: Ensaios e conferências. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002. [p. 184]
[2] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/04/filosofia-e-sociologia-obrigatorias-derrubam-notas-em-matematica.shtml, Acesso em 20 maio 2023.
[3] Apenas alguns exemplos: 27/11/22 (https://www.anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/-algumas-reflexoes-sobre-o-trabalho-filosofico-no-brasil), 24/02/23 (https://www.anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/possiveis-caminhos-para-o-ensino-de-filosofia), 26/04/23 (https://www.anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/por-que-o-novo-ensino-medio-e-tao-ruim).
[4] https://www.anpof.org/forum/a-anpof-e-o-ensino-medio
[6] https://www.anpof.org/comunicacoes/entrevistas/anpof-cria-comissao-dedicada-ao-ensino-de-filosofia--entrevista-com-tais-pereira
[7]https://www.anpof.org/wlib/ckfinder/userfiles/files/Files%202/Files%203/Carta%20GT_Sem%20Filosofia%20na%CC%83o%20tem%20base%20(1).pdf, https://www.anpof.org/wlib/ckfinder/userfiles/files/A%20PRESENC%CC%A7A%20DA%20FILOSOFIA%20NO%20PO%CC%81S-BNCC%20-%20versa%CC%83o%20final%20com%20timbre.pdf