O que é Pânico Civilizacional? Novos contornos e articulações a um conceito, em resposta a Murilo Seabra e Arthur Dantas

Fernando de Sá Moreira

Professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal Fluminense

22/02/2023 • Coluna ANPOF

Em dezembro, publiquei uma coluna sobre a relação entre o que chamo de pânico civilizacional e a educação. Recentemente, esse texto recebeu uma interessante resposta de Murilo Seabra e Arthur Dantas. Nela, os autores se dedicam a radicalizar o conceito de pânico civilizacional.

O mais importante do texto de Seabra e Dantas parece ser a defesa de uma distinção entre duas posturas de mudança nos currículos: uma reformista/diversificacionista e outra radical/revolucionária. Nas palavras dos autores, elas são caracterizadas respectivamente por:

  1. “Introduzir de forma controlada e moderada obras de agentes epistêmicos marginalizados, inferiorizados e racializados, sem forçar uma completa reconfiguração do currículo”; e

  2. “Abrir espaço para agentes epistêmicos marginalizados, inferiorizados e racializados de forma genuína, eliminando o destaque concedido às obras produzidas na Europa e nos EUA”.

Eles afirmam ainda que a primeira proposta seria inofensiva para o atual estado de coisas. Em consequência, entendem que não há razão para a existência de um pânico civilizacional associado a ela. Em contrapartida, enxergam a segunda como uma proposta “radical e estruturante”, e tiram daí a conclusão de que, em relação a ela, o pânico civilizacional seria “plenamente justificado”.

De minha parte, gostaria de dizer que os autores reconhecem bem um problema: eles observam que uma crítica coerente aos currículos acadêmicos das humanidades não deve se limitar a promover a presença marginalizada e esvaziada de pensadoras(es) da América Latina, África, Ásia ou Oceania. Repensar o currículo com seriedade significa reconhecer, entre outras coisas, que há limites de tempo, energia e recursos que se podem empregar em um curso. Para que mudanças estruturais possam acontecer, é forçoso realocar espaços e centros de gravidade dos currículos, é preciso encontrar diferentes relações e pontos de equilíbrio.

Eu acrescentaria ainda – e acredito que os autores concordam comigo nisso – que é preciso ir além de reorganizar os conteúdos de nossos cursos, ou seja, que livros ou autoras(es) estudamos ou deixamos de estudar. Com efeito, para nomear apenas algumas das tarefas, trata-se também de repensar as práticas de inclusão ou exclusão dos próprios corpos discentes, docentes e técnicos da academia; também é preciso repensar políticas de publicação; políticas linguísticas; formas de intervenção no debate público; as relações didáticas e comunitárias; etc. Se nossa crítica se limitar a questionar apenas os conteúdos, pouco avançaremos.

O que está em jogo é mais do que variar a origem das obras ensinadas, é também revelar, reconhecer e transformar práticas, objetivos e experiências. Alguns museus etnológicos na Europa quase não possuem itens da própria Europa, e é evidente que isso não significa que suas coleções foram formadas sob uma perspectiva antirracista. O Museu da Polícia Civil no Rio de Janeiro possuía inúmeros objetos de religiões afro-brasileiras, e é evidente que isso não significa que seja um museu decolonial. Importa de onde uma obra vêm. Mas não importa somente isso. É fundamental pensar a que e quem serve sua exposição, de que modo se a articula em jogos de poder, que transformam ou não as lógicas de dominação e exploração vigentes.

Isto posto, tenho que dizer que há dois equívocos importantes a ser considerados no texto de Seabra e Dantas.

O primeiro deles é identificar em meu texto anterior a defesa de uma postura meramente diversificacionista. Esse não é, de forma alguma, o ponto daquela coluna. Ali, o problema central é desvendar os mecanismos de defesa acionados, individual e coletivamente, na comunidade acadêmica diante de críticas e contestações curriculares, sejam elas radicais ou não. Em outras palavras, o objetivo não era tanto dizer o que deveria ser feito, mas diagnosticar no meio universitário um sintoma, seus modos de manifestação, e algumas de suas origens.

O segundo equívoco é a compreensão incompleta do pânico civilizacional. Há talvez uma interpretação demasiadamente rápida do conceito, que parece fazer os autores acreditarem que em alguns casos seu surgimento seria “justificado”. Entretanto, em nenhum cenário o pânico civilizacional se justifica. A imagem que o pânico cria é de que se quer queimar livros, apagar pensadores da história, destruir tudo e todos. Isso não é nem de perto a realidade, nem mesmo em propostas radicais/revolucionárias de crítica ao currículo. Diante de ambas as propostas de mudança, o pânico falsifica a realidade e nos transforma a todos em reféns de um estado de alarme insano e inflacionado.

Acontece que o pânico civilizacional não é meramente uma reação forte, emocional e pontual a críticas. Trata-se de uma reação socialmente validada e que se dá sem a devida análise e escuta àquilo que foi dito. O pânico não é desencadeado pela pleito em si – reformista ou revolucionário –, mas pelo acionamento de gatilhos emocionais e intelectuais. Vale observar que essa reação está relacionada intimamente com a ideia que haveria uma grande ameaça à identidade e herança das pessoas envolvidas. No limite, tal identidade e herança não são vistas como algo de local e particular, mas como algo da essência mesma do mundo legitimamente humano, parte da própria “Civilização”.

Esse pânico opera no mais das vezes com noções maniqueístas de Civilização e Barbárie. Ele depende da crença profunda que existem bárbaros cercando a Civilização e, pior, que muitos bárbaros já se encontram infiltrados nas instituições civilizatórias. Em última instância, os bárbaros não teriam outro propósito ou efeito, senão a destruição da Civilização; não teriam outro método, senão a violência e o ardil. Aqui o currículo é sentido intimamente como uma das colunas da Civilização, e da própria comunidade acadêmica. Desse modo, “ameaçar” o currículo seria desrespeitar o passado, corromper o presente, e destruir o futuro humano.

Contudo, mais do que só “injustiça” ou “violência”, parece que se defende a existência de algo de “depravado” nas críticas ao currículo. Posso estar tremendamente errado neste ponto, mas me arriscaria a dizer que o pânico civilizacional age numa dinâmica aparentada à do pânico moral-sexual. O currículo está intimamente relacionado com a função reprodutiva da cultura, assim como é também fonte de prazer, sofrimento, identificação e poder. E, como não poderia deixar de ser, o currículo se torna, nesta lógica, locus de desejo, tabu, fetiche e controle. Essa hipótese possui muitos desdobramentos e, para não me delongar, me satisfaço em fornecer a seguir apenas um:

Tratamos muitas vezes os “clássicos” de nossos currículos, mesmo sendo majoritariamente homens, numa lógica que se assemelha à idealização da honra social-sexual de mulheres no modelo aristocrático europeu (e atavicamente do mundo burguês ocidental). A mera suspeita pública sobre o racismo de um clássico ou da LGBTfobia de outro devem ser tratadas rapidamente como uma tentativa de violação de sua honra. E, como tal, exige uma reação rápida que possa preservá-la ou lavá-la.

Conforme a lógica da honra, uma mulher desonrada seria uma vergonha para seus pais (passado), seu marido (presente) e seus filhos (futuro). Cabe àqueles associados a ela restaurar sua honra ou, em alguns casos, expurgá-la por completo da família. No caso de um clássico de honra ferida, cabe a seus discípulos(as) fazer o mesmo. Simbolicamente, isso é como lavar a própria honra, visto que a desonra do clássico é também uma mácula para aqueles que se julgam seus descendentes. Por isso, grande parte das respostas às críticas aos clássicos terminam com reafirmações fortes de que o “clássico” segue sendo um “clássico” (permanece honorável), que a justiça lhe foi feita (fora restituído seu lugar de pureza e mais alta dignidade), e que quem com ele se identifica pode seguir estudando-o de “alma lavada” (como um filho que pode ser visto novamente com a mãe, cuja honra fora restituída).

Segundo o código de honra cavalheiresco, frequentemente a honra poderia ser restaurada através da prática de um duelo. Mas, o mesmo não costuma valer no teatro público da honra do cânone acadêmico. Aqui, o que lava a alma não costuma ser um duelo, pois bárbaros não são dignos de um duelo. Na lógica maniqueísta da Civilização, o civilizado se rebaixaria ao duelar com o bárbaro. Lava-se a honra do clássico ao apontar que quem o “critica” não faz parte da Civilização. É um bárbaro, iletrado, irracional, violento e violador. Logo, ele nada teria a dizer verdadeiramente e, por isso, não é merecedor de escuta. Com efeito, a maior parte dos textos em defesa dos clássicos não é uma resposta ao “bárbaro”, mas sim uma resposta direcionada a uma audiência “civilizada”, a quem se pretende convencer da baixeza de quem tentaria “desonrá-lo”.

Portanto, trata-se de uma reação socialmente compartilhada. Um dos efeitos mais diretos do pânico civilizacional é o controle do próprio debate público sobre os sentidos do currículo e suas possibilidades e, com isso, também um controle das pessoas e suas possibilidades. Em todos os casos, combate fantasmas e persegue bárbaros imaginários. Ele transforma a todos em seus reféns. Ainda pior, ele nos torna reféns de quem seja capaz de, como no caso do pânico moral, manipular os sentimentos e as sensibilidades envolvidas. Onde reinar o pânico civilizacional, não haverá nenhuma emancipação humana verdadeira.

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