Por que a comunidade filosófica resiste em reconhecer e respeitar as especificidades do Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa?

Patrícia Del Nero Velasco

Professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Mestrado Profissional em Filosofia da UFABC; Coordenadora do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar (2022-2024)

10/04/2024 • Coluna ANPOF

Nos últimos cinco anos, o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar debruçou-se sobre o tema do Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa, realizando e publicizando uma série de investigações sobre a constituição e a consolidação do campo do Ensino de Filosofia no Brasil. Pesquisas estas que:

(1) retomam o histórico das produções teóricas do Ensino de Filosofia e analisam o que se convencionou chamar de virada discursivo-filosófica, movimento de problematização do Ensino de Filosofia a partir de perspectivas filosóficas (Rodrigues & Gelamo, 2021; Tomazetti, Rodrigues & Velasco, 2022);

(2) recuperam o legado argentino das investigações realizadas no Brasil (Velasco, 2022a);

(3) recolhem o acervo de produções das/os integrantes do GT (Velasco, 2020) e, aos poucos, também o acervo dos demais pesquisadores e pesquisadoras da área (disponível em: https://lapefil.pesquisa.ufabc.edu.br/acervo/);

(4) discutem um possível estatuto epistemológico do campo e suas interfaces com a Didática da Filosofia e a Filosofia da Educação (Velasco, 2022b; Ribas, 2023; Tomazetti, 2024);

(5) resgatam as relações epistemológicas, éticas, estéticas e políticas que constituem o campo do Ensino de Filosofia no Brasil para problematizar, desde a emergência de uma política filosófica de ensinar e aprender filosofia, as heranças da formação docente ou, em outras palavras, a ressonância do campo de pesquisa nos professores/as e pesquisadores/as que nos tornamos (Rodrigues, 2024).

Não obstante os debates propostos pelas supramencionadas pesquisas e as inúmeras iniciativas veiculadas no Mês ANPOF Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo (cf. Velasco, 2022c), recentes concursos docentes provocaram em nós – da comunidade do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar – uma série de questionamentos e manifestações (cf. Arquivo 15 do GT), os quais podem ser resumidos na pergunta que dá título à presente coluna: por que a comunidade filosófica resiste em reconhecer e respeitar as especificidades do Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa? As linhas que se seguem procuram esmiuçar as questões suscitadas pelos referidos editais de concursos, convidando a comunidade filosófica a conosco discutir.

A fim de contextualizar a leitora e o leitor, os concursos públicos docentes em questão trazem a exigência de “doutorado em Filosofia” e, em alguns deles, os pontos indicados em seus respectivos editais não correspondem ao que se pesquisa na área e, por conseguinte, ao que seria desejável para um docente ou uma docente responsável pelos Estágios Supervisionados em Filosofia, por programas institucionais como o PIBID e a Residência Pedagógica, e por disciplinas como Práticas de Ensino de Filosofia, Metodologia de Ensino de Filosofia, Didática da Filosofia, Filosofia do Ensino de Filosofia, Questões de Ensino de Filosofia, entre outros nomes que constam nos projetos pedagógicos dos cursos de Licenciatura em Filosofia no Brasil (Nascimento, 2020).

Recuperado o contexto, observa-se que historicamente as pesquisas sobre Ensino de Filosofia foram acolhidas por programas de pós-graduação (PPGs) em Educação, desenvolvidas e orientadas por filósofas e filósofos de formação que não encontraram “lugar institucional” nos departamentos e programas de pós-graduação em Filosofia. De fato, a chamada 1ª geração de pesquisadoras e pesquisadores da área é oriunda da Filosofia da Educação e, embora estejamos falando de subáreas distintas de pesquisa, em grande medida as produções da primeira década de investigações em/sobre Ensino de Filosofia foram perpassadas por problemáticas e referenciais teóricos dessa subárea irmã. Imbricações teóricas que se mantêm em alguns textos – notadamente embasados em referências da Filosofia da Educação, mas com títulos e menções ao Ensino de Filosofia. Todavia, para estudiosas e estudiosos do campo, enquanto a Filosofia da Educação se dedica, grosso modo, à discussão filosófica sobre os problemas educacionais mais amplos, isto é, aos fundamentos filosóficos da educação, “as questões relacionadas ao ensino da Filosofia exigem tratamentos particularizados no que se refere ao ensino propriamente dito e também à formação e à prática docente do(a) professor(a)de filosofia” (VELASCO, 2022b, p. 18).

Mas voltemos ao problema posto. Por conta da realização de pesquisas sobre Ensino de Filosofia majoritariamente em PPGs de Educação, as teses sobre a temática são, consequentemente, defendidas nestes programas. Cerca de 25 anos após a supracitada virada discursivo-filosófica do Ensino de Filosofia – cujo marco corresponde ao Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia (Piracicaba-SP, 2000) e à coletânea dele oriunda, intitulada Filosofia do Ensino de Filosofia (Gallo; Cornelli; Danelon, 2003) –, além de uma 2ª geração de pesquisadoras e pesquisadores vindos de áreas filosóficas como Lógica, Estética, Filosofia Política e Ética (e que se aproximaram tanto por interesse genuíno quanto por assumirem disciplinas e programas institucionais de formação docente), já é possível nomear uma 3ª geração formada sob a égide do movimento de reflexão sobre o ensino de filosofia como um problema filosófico (Cerletti, 2009). Trata-se de recém-doutores que se debruçam sobre a temática do Ensino de Filosofia desde as suas pesquisas de iniciação científica e trabalho de conclusão de curso. Pesquisadoras e pesquisadores que tiveram a oportunidade de estudar a vasta e profícua literatura da área acumulada desde então, puderam conhecer os debates que constituem o campo e com eles dialogar – desdobrando-os e aprofundando-os. Profissionais que, por terem obtido seus títulos de doutorado em PPGs de Educação, estão impedidos de participar e concorrer às vagas de Ensino de Filosofia dos concursos e processos seletivos para docentes aqui tensionados. A interdição a que chamamos a atenção nessa coluna não diz respeito somente a estes recém doutores que percorreram toda a sua trajetória acadêmica na área. Pesquisadores da 2ª geração do campo, como Christian Lindberg L. Nascimento e Bruno Cardoso M. Bahia, atualmente coordenadores do PPG-Filosofia da UFS e do PPG-Educação Agrícola da UFRRJ, respectivamente, não poderiam sequer se inscrever nestes concursos. Tampouco o poderia Silvio Gallo, um dos maiores nomes do Ensino de Filosofia no Brasil, mas cujo doutorado foi obtido no programa nota 7 da UNICAMP... em Educação.

A despeito da abertura, nos últimos anos, da comunidade filosófica à temática do Ensino de Filosofia, a presente coluna pretende alertar que não basta a aprovação de vagas de concurso em Ensino de Filosofia (um claro sinal de reconhecimento da especificidade do trabalho docente na área) se esta não vier acompanhada do cuidado em seu preenchimento, da compreensão das particularidades das pesquisas e da formação na área – seja na composição dos pontos dos editais, seja na exigência de titulação para o pleito. Dificilmente um lógico atenderia às demandas de uma vaga de História da Filosofia, assim como um epistemólogo à vaga de Estética. Não obstante o senso comum em torno do Ensino de Filosofia, segundo o qual qualquer filósofo ou filósofa poderia lecionar, pesquisar e orientar sobre o tema, o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, respaldado em seus 18 anos de existência e no acervo de produções e debates no campo, compartilha nesta coluna uma preocupação genuína, convidando os pares a refletir sobre a problemática em tela – atentando às especificidades temáticas e formativas da subárea do Ensino de Filosofia em futuros editais de concurso e nas demais iniciativas (sempre muito bem vindas) relacionadas ao ensino e à formação docente em Filosofia.


Referências

CERLETTI, A. O ensino de filosofia como problema filosófico. Tradução de Ingrid M. Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

GALLO, S.; CORNELLI, G.; DANELON, M. (Org). Filosofia do Ensino de filosofia. Petrópolis: Vozes, 2003.

NASCIMENTO, C. L. L. A área Ensino de Filosofia nos cursos de licenciatura em Filosofia: um estudo preliminar. In: Coluna ANPOF, 2020. Disponível em: https://www.anpof.org.br/comunicacoes/coluna-anpof/a-area-ensino-de-filosofia-nos-cursos-de-licenciatura-em-filosofia-um-estudo-preliminar-1. Acesso: 25 mar. 2024.

RIBAS, J. E. A construção do discurso do Ensino de Filosofia no Brasil: uma analítica acerca da constituição epistemológica do campo. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, RS, 2023.

RODRIGUES, A.; GELAMO, R. P. Ensino de filosofia: notas sobre o campo e sua constituição. Educação e Filosofia. Uberlândia, v. 35, n. 74, p. 813-854, mai./ago., 2021.

RODRIGUES, A. Heranças político-filosóficas de ensinar e aprender filosofia: do campo do Ensino de Filosofia à trajetória formativa na UNESP. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Marília, SP. 2024.

TOMAZETTI, E. M. A didática da filosofia no território universitário brasileiro. In: OLIVEIRA, D. B.; BRITO, M. R. (Org.). Ensino de filosofia e seus problemas. Belém: RFB, 2024, p. 27-46.

TOMAZETTI, E. M.; RODRIGUES, A.; VELASCO, P. D. N. Filosofia do Ensino de Filosofia: uma conversa sobre os movimentos de sua constituição como campo acadêmico. Podcast ANPOF. 13/05/2022. Disponível em: https://anpof.org.br/comunicacoes/podcast-anpof/filosofia-do-ensino-de-filosofia-uma-conversa-sobre-os-movimentos-de-sua-constituicao-como-campo-academico. Acesso: 12 mar. 2024.

VELASCO, P. D. N. Filosofar e Ensinar a Filosofar: registros do GT da ANPOF - 2006-2018. Rio de Janeiro: NEFI Edições, 2020, p.604.

_____. Sobre a virada discursivo-filosófica do ensino de filosofia: o legado argentino e a problemática do campo. O Que Nos Faz Pensar (PUCRJ), v. 30, p.335-362, 2022a.

_____. O estatuto epistemológico do Ensino de Filosofia: uma discussão da área a partir de seus autores e autoras. Pro-Posições (UNICAMP. Online), v. 33, p. 1-26, 2022b.

VELASCO, P. D. N. (Org.). Mês ANPOF Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo. Revista Digital de Ensino de Filosofia (UFSM), v. 8, 2022c.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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